segunda-feira, novembro 01, 2004
O QUINTO IMPÉRIO
O Quinto Império
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição de raiz –
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
E assim, passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou.
Grécia, Roma, Cristandade,
Europa – Os quatro se vão
Para onde vai toda a idade.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
-Fernando Pessoa, «Mensagem»
É preciso ter sempre em consideração que o texto da “mensagem” é um texto esotérico, no bom sentido que esotérico pode ter, ou seja, como a “Metafísica” de Aristóteles, ou “Assim Falava Zaratustra”, ou as parábolas de Jesus são textos esotéricos. Quer isto dizer, essencialmente, que não são textos para espíritos gordos, anafados, obesos, a arrotar douta sapiência. Mas para espíritos mendigos, nómadas que erram pela terra em busca do alimento, do “pão”. A luz é para quem a procura e não para quem julga que a tem. O espírito não se tem, exercita-se.
A este propósito, e título de exemplo, convém que clarifique o seguinte pormenor há muito deturpado.
No “Sermão das bem-aventuranças”, Jesus, no texto original, em grego (e não em latim como, por tradição, foram sendo feitas traduções) profere o seguinte:
«Makárioi oi ptõchoi tõ pneúmati
õti aútõn he basileia tõn ouranõn » (...) (Mateus, 5,3)
A tradição faz a seguinte tradução:
« Felizes (ou bem-aventurados) os pobres em espírito (ou pobres de espírito) porque deles é o Reino do Céu»
A passagem é por demais conhecida e, graças a essa “tradução”, deixou para a posteridade a ideia de “bem-aventurados os imbecis, ou tolinhos, ou ígnaros, ou coisa do género”.
A “traição” reside basicamente no termo “ptõchoi”, traduzida para o latino “pauper” e, a partir daí, para o portugês “pobre”. Porém, “pobre”, em grego, não radica no “ptochos”, mas na “penia” (pobreza), donde resultou a nossa “penúria”. Pois bem, que significa então, originariamente, “ptochos”? Significa, exactamente, “mendigo”. Ora, é diferente, sobretudo em termos de metáfora, de parábola, de riqueza simbólica, dizer “pobre” ou dizer “mendigo”; na verdade, bem traduzido, o que Jesus diz é “ bem aventurados os que mendigam espírito”, isto é, “bem aventurados os que procuram, os que buscam espírito (pois reconhecem nessa sua demanda a sua falta mais essencial, a mais elementar substância para a sua sobrevivência”). Tanto que essa ideia é logo adiante confirmada com “bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, pois serão saciados”, ou seja, novamente a dimensão ética, espiritual, a sobrepôr-se à mera dimensão bestial, intestinal, bandulhística. E, mais uma vez, refira-se, a título de curiosidade, a tradução de “fome” para o termo “peina” (do grego) é empobrecedora, porque “peina” tanto pode significar “ter fome”, como “ter necessidade de”. O fato é sempre feito ao gosto do alfaiate, ou a tosquia ao gosto do tosquiador...
O “mendigar” simboliza, por conseguinte, esse “estar necessitado de”, esse ter consciência de qual a sua verdadeira necessidade. Daí que o sujeitar-se a essa ”necessidade”, segundo Jesus, venha constituir, ao mesmo tempo, o odos (o caminho) da libertação. Pura figura exemplar, dum divino que desce à necessidade, ao patíbulo entre os mortais, ele próprio mostra o trilho, a odisseia da liberdade através da necessidade. É na necessidade –na vida, com tudo o que a vida tem -, que o homem se encontra e, na medida em que se encontra, encontra Deus, e não contra ela, a vida/necessidade, ou a fugir dela e, inerentemente, de si. Jesus mostra o caminho, reabre a via, mas não substitui os caminhantes. Foi traído (ou mal traduzido, se preferirem) por Judas, por Pedro e, acima de todos, por Paulo. A tradução de Paulo, sobre todas, é uma contradição de Jesus, um “Contra-o-que-Jesus-disse”, donde resultou, em grande parte, um cristianismo que não libertou mas fechou o homem nos seus medos, nas suas fobias, na sua proscrição fictícia. A fuga de Pedro, a sua cobardia, a sua perda de fé diante do abismo, perpetuar-se-á na Igreja de que, em teoria, constituirá a “primeira pedra”. O fariseísmo judaico-romano de Paulo contaminará o discurso.
Chamo a atenção que esta é a minha singular perspectiva, puramente filosófica, e não pretende colocar minimamente em causa credos, convicções religiosas ou dogmas assumidos seja por quem for. Se há alguém errado, sou certamente eu e o inferno espera-me concerteza. Tranquilizem-se, pois, as boas almas e os beatos encartados todos da paróquia.
Apenas explanei este arrazoado, porque a perspectiva de Nietzsche, no Anticristão (erradamente traduzido por “anticristo) é, no essencial, bastante próxima. Sendo o “anticristianismo” de Pessoa, em quase tudo, o “anticristianismo” de Nietzsche, tornou-se necessária esta exposição para que possamos entender o significado cabal desse termo. Assim, pela negação da negação (lei básica da lógica) temos a afirmação: sendo o “cristianismo” de Paulo a negação de Jesus, a negação dessa negação nada mais pretende que a reafirmação, ou re-descoberta daquilo que foi entretanto escondido e encoberto. A limite, “anti-cristão”, em Nietzsche, como em Pessoa, deve ser lido como anti-anticristo.
Não é por acaso que Nietzsche, no fim da sua vida, assina cartas como “O Crucificado”. E Pessoa escreve, na “Mensagem”, logo a seguir ao Quinto Império, no “Desejado”:
«Mestre da Paz, ergue teu gládio ungido,
Excalibur do Fim, em jeito tal
Que sua Luz ao mundo dividido
Revele o Santo Gral!”
Para podermos entender aquela que, no meu bárbaro entender, é a ideia de “Quinto Império” em Fernando Pessoa, tornava-se imprescindível perceber esta noção “anticristã”. De alguma forma, sendo da pura ordem do “espírito” (espírito, esse, não como alminha, mas assumpção, respiração plena da vida) o Quinto Império radica nesse “mar por navegar” onde a figura de Jesus Cristo emerge, em aura velada, por detrás da figura enigmática do Infante.
O resto, depois, falamos.
Entretanto, depois do que aqui ficou dito, tentem decifrar o poema em epígrafe. Vejam se faz sentido. É provável que não, ou...
“Ser mendigo é ser homem”.
Mendigo – do latim “mendicus”, indigente; na raíz: “menda” – defeito físico; falta; erro (de linguagem, num texto, cometido pelo copista).
De “menda”, originou-se, entre outros, o nosso português “emenda”.
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8 comentários:
Humm...! Perigo à vista! Daqui em diante, é preciso bússola, sextante, GPS e até, faro de perdigueiro.
A parte do poema mais intrigante, parece-me esta:
"(...)passados os quatro
Tempos do ser que sonhou,
A terra será teatro
Do dia claro, que no atro
Da erma noite começou."
É sempre reconfortante entrever o Maravilhoso nas palavras e na visão alheias.
Vou arriscar a irrisão dos incréus:
Uma das maravilhas da vida, é acreditar que não estamos sós e fomos criados, de alguma forma, por Outrém.
As religiões glosam sempre esse tema eterno.Sejam as incipientes aborígenes ou as sofisticadas indús, passando pela feira dos evangélicos bushianos. Mas reconduzem-nos ao mesmo:Alguém, algures, sabe quem nós somos, de onde vimos e para onde vamos!
O caminho para a sabedoria fragmentada, será por isso, feito de buscas; de atalhos e cuidados. Ninguém o descobriu ainda, mas os buscadores pressentem-no nos passos que dão. Os da judeia, de solidéu no cucuruto, procuram-no afanosamente numa Palavra. Os cristãos de várias matizes, no sofrimento redentor de alguém que lhes disse "é por aqui"! Os do oriente, nos elementos e na simbiose de tudo o que existe.
Fernando Pessoa foi mais um desses buscadores. Foi por um dos atalhos que outros lhe indicaram e deixou sinais da viagem mental.
Eu, por mim, achei maravilhoso o filme "Encontros Imediatos do 3º grau". É uma espécie de sonho, com um conteúdo: Alguém , algures, sabe!
E nós só pressentimos essa Sabedoria. Tacteamos no labirinto, à procura do fio de Ariane e vamos encontrando apenas pedaços desfeitos que de nada servem. Por isso devemos prosseguir, na descoberta.
Talvez lá cheguemos um dia, à descoberta do caminho de saída.
Por enquanto, navegamos num mar de metáforas. E muito do que dizemos e escrevemos não passam de grandes palermices, sem sentido que não seja o de podermos escrever o que nos vem ao pensamento.Como as crianças fazem.
Cocuruto!( enfim, mais uma...)
“Ser mendigo é ser homem”.
Ó sr. Dragão, este teu texto é muito interessante. E nem sabes como vai certinho e direitinho para coisas mais antigas que também me importam. Incluindo as da iconografia. A ideia também em parece essa. O mendigo, o remendado, o que larga as muralhas da cidade e se mete à viagem. O homo viatur, o peregrino ou o cruzado, cabem todos nessa categoria de despojamento e demanda. E a demanda era sempre a da sabedoria.
agora para o José.
Uma questão que sempre me fascinou foi essa mesma ideia poder ser praticada por um ateu materialista convicto, sem a menor metafísica. E a verdade é que pode, e ainda me parece mais difícil que a que é feita pelo crente.
Em primeiro lugar: Esse teu "comentário", ó José, honra-te. Vou publicá-lo na "front-blogue". É sempre reconfortante constatar que não se está a falar com o boneco!...
Por outro lado, isso das "crianças" tem muito que se lhe diga. A "criança", dizendo-o sumariamente, opõe-se ao "criado", tanto quanto ao "infantil" (de imbecil) e ao "adulto".
Aí uma das alternativas possíveis é: Ou o Homem é o "criado de Deus" (ideia judaica), ou o Homem é a "criança de Deus".
A mensagem de Jesus parece claramente ser: "vós não sois meus subalternos, vós sois meus irmãos". A fazer fé nos evangelhos...
Agora nós, miss Zazie: Que me dizes tu dos Provençais? Do Parzifal, de Wolfram von Eisenbach e a sua "Demanda do Graal"?...
E, naturalmente, o livro paradigma de todas as iniciações, o "Livro do Homem", como eu lhe chamo: a "Odisseia" - o círculo do eterno retorno, do princípio que é sempre o fim, do ponto de partida que é igualmente o ponto de chegada...
E já agora... "De divisione naturae", dum tal Escoto Erígena, diz-te alguma coisa?...
E a curiosíssima "carta de Preste João das Índias"?...
Bem, ó sô dragão, digo-te já que nunca li o Scoto, na origem. Apenas comentários e análises. Mas dos restantes o que mais me interessa é esse Prestes João. No meu caso por motivos iconográficos tenho mesmo de esbarrar nele e na carta. Melhor do que eu, quem te pode dizer sobre o Prestes é o Manuel João Ramos que tem excelentes estudos sobre o assunto. Eu ando com outras coisas. E essas outras coisas são remakes da carta. As famosas cartas que choviam dos céus de que tanto se falava nos velhos tempos medievais. E na verdade ela ainda continuam a “chover” em plena época das Descobertas, no dito início da mundo moderno e renascentista. E com o que deparei foi com essa ideia. Dos súbditos irmãos. E que irmãos... e que súbditos... (uma delícia!)
O raio é que sou preguiçosa e também tenho muitas outras coisas para fazer. Mas qualquer dia publica esta treta.
já agora, para vocês que sabem mai disso que eu: De onde virá essa diferença entre os homens criados de Deus do Antigo Testamento para a ideia de homem criança de Deus? vocês acham que a tradição órfica pode ter alguma coisa a ver com isso? por cá o S. Marinho de Dume falava no Cristo novo Orfeu...
Quanto a mim, vejo Jesus como um herói trágico, mais figura da cultura grega que da judaica. O órfico não me espantaria, se bem que os arquétipos que se lhe aparentam, julgo eu, serão outros. Um dia destes explico.
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