segunda-feira, novembro 29, 2004
Da Esfinge
«A pergunta da Esfinge, sabemo-lo, é a pergunta pelo "homem". No seu percurso vital, a vida deste acompanha o sol. Caminham lado a lado. Nascem, elevam-se e declinam. Ora, se o sol se regenera, porque não se haveria de regenerar o homem? E se o homem acompanha o sol, como se regenera ele?
Chamamos amanhecer ao nascimento do sol; chamamos infância ao amanhecer do homem. A ideia de que cada homem é uma ilha, um indivíduo –no sentido de unicidade isolada - que nasce e morre definitivamente, choca, colide, alterca com essa outra forma, chamemos-lhe cósmica, de entrever o antropos. De facto, a forma aleijada e efémera de entender a vida humana, tanto quanto preside aos mecanismos potenciadores do mundo e do "estar-no-mundo", de igual modo emerge a partir duma redução, duma estreiteza grosseira de vistas. Porque, como a natureza inteira grita a plenos pulmões, nem a morte é definitiva, nem o nascimento é único. O bebé que nasce não irrompe súbita e unilateralmente, desligado e excêntrico, como um big-bang ad-nihil. A criança é continuação, persistência, como a morte é passagem, presságio. Na criança é o homem que amanhece, como é o ancião que se regenera.
Por outro lado, na separação umbilical que sucede ao nascimento, a tesoura só corta o cordão, não interrompe o vínculo, o elo íntimo ao Ser. Não é uma fabricação o que se colmata: Nem a mãe é uma fábrica, nem a criança é um artefacto, ou manufactura. Também não é um ciclo novo e inaudito que principia, que irrompe insulanamente, mas o fio da vida que persiste, que perdura e se regenera. É o amanhecer do homem. No fim da noite, da espera, irrompe a madrugada: acontece a luz, que se restaurou atravessando as trevas. Eterno retorno e metáfora cósmica, o pé humano ergue-se, aí, da caverna. Do antro matriz, onde a vida se firma e a pegada permanece.
O Homem não é só um apogeu, um auge: é também um dealbar e um entardecer. Não é apenas um erguer-se e afastar-se, elevando-se, no horizonte, como do "antron": é igualmente um primórdio vacilante e um regresso exausto ao chão, à noite, a casa. É-o enquanto episódio e enquanto epopeia. O episódio não se encerra num verso, como a epopeia não se reduz a um episódio. Depois, tudo junto devém metáfora, mythos, pulsação no coração do tempo. Quer dizer, não termina, não acaba, não desiste. Pelo contrário, transfigura-se, transmuda-se, mas persiste. Obstina-se. Contrapõe a tenacidade à ligeireza e frivolidade do mundo.»
- "O Fio e e o Fito", in "Tratado da Besta".
Se não gostam, não comam. Mas hoje deu-me para citar o meu Mestre.
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