segunda-feira, novembro 08, 2004

Da República (dos Bananas)


De como se vê que o eventual “republicanismo” de Fernando Pessoa nada tinha que ver com aquele que foi implantado em 5 de Outubro de 1910. (E, portanto, de como entre Pessoa e as “obras da maçonaria” se escancarava um abismo).

«O observador imparcial chega a uma conclusão inevitável: o país estaria preparado para a anarquia; para a república é que não estava. Grandes são as virtudes de coesão nacional e de brandura particular do povo português para que essa anarquia que está nas almas não tenha nunca verdadeiramente transbordado para as coisas!
Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos –porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida); gatunos com seu quanto de ideal verdadeiro, anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos –, de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regimen a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República.
A monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo em ditadura as suas leis mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis da família, a lei da separação da Igreja e do Estado – todas foram decretos ditatoriais, todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais.
A monarquia havia desperdiçado, estúpida e imoralmente, os dinheiros públicos. O país, disse Dias Ferreira, era governado por quadrilhas de ladrões. E a república que veio multiplicou por qualquer coisa – concedamos generosamente que foi só por dois (e basta) – os escândalos financeiros da monarquia.
A monarquia, desagradando à Nação, e não saindo espontaneamente, criara um estado revolucionário. A república veio e criou dois ou três estados revolucionários. No tempo da monarquia, estava ela, a monarquia, de um lado; do outro estavam, juntos, de simples republicanos a anarquistas, os revolucionários todos. Sobrevinda a república, passaram a ser os republicanos revolucionários entre si, e os monárquicos depostos passaram a ser revolucionários também. A monarquia não conseguira resolver o problema da ordem; a república instituiu a desordem múltipla.

É alguém capaz de indicar um benefício, por leve que seja, que nos tenha advindo da proclamação da República? Não melhorámos em administração financeira, não melhorámos em administração geral, não temos mais paz, não temos sequer mais liberdade. Na monarquia era possível insultar por escrito impresso o Rei; na república não era possível, porque era perigoso, insultar até verbalmente o sr. Afonso Costa.

O sociólogo pode reconhecer que a vinda da república teve a vantagem de anarquizar o país, de o encher de intranquilidade permanente, e estas cousas podem designar-se como vantagens porque, quebrando a estagnação, podem preparar qualquer reacção que produza uma cousa mais alta e melhor. Mas nem os republicanos pretendiam este resultado nem ele pode surgir senão como reacção contra eles.
E o regimen está, na verdade, expresso naquele ignóbil trapo que, imposto por uma reduzidíssima minoria de esfarrapados morais, nos serve de bandeira nacional – trapo contrário à heráldica e à estética, porque duas cores se justapõem sem intervenção de um metal e porque é a mais feia coisa que se pode inventar em cor. Está ali contudo a alma do republicanismo português – o encarnado do sangue que derramaram e fizeram derramar, o verde da erva de que, por direito mental, devem alimentar-se.

Este regimen é uma conspurcação espiritual. A monarquia, ainda que má, tem ao menos de seu o ser decorativa. Será pouco, socialmente, será nada, nacionalmente. Mas é alguma coisa em comparação com o nada absoluto que a república veio a ser.»

- Fernando Pessoa, “Da República”


A mim, deixem que vos diga, parece-me um testemunho clarividente e desassombrado do badanal da época. Não tendo eu conhecido outra, tendo-a servido com muita honra, também me parece que a bandeira de república não prima pela beleza. Uma bandeira portuguesa sem o azul do céu e do mar, só pode ser uma piada de mau gosto. É claro que num país onde o benfiquismo se sobrepõe e confunde com o nacionalismo, fica tudo em família.
Do que importa registar é que, duma forma arrepiante, a descrição de Pessoa pós-Outubrista também se ajusta, cada vez mais, ao pós-Abrilismo. Adiou-se de novo o país, queimou-se ignobilmente a esperança e tratou-se do bolso e da barriguinha de mais não sei quantos esfarrapados mentais. Quanto à grande glória e supina proeza governativa foi transformar o país, ele todo, por atacado, senão numa puta, seguramente num pedinte.
Um país que já não navega, nem sequer trabalha; que baixou as mãos do leme e, da porta da tasca convertida em banco, as estende doravante, sujas, à caridade
europeia.

2 comentários:

zazie disse...

" Uma bandeira portuguesa sem o azul do céu e do mar, só pode ser uma piada de mau gosto. "

CLAP, CLAP, CLAP! c'um caraças, Dragão, até nisto?!?!? até nisto havia de haver sintonia... isto assim começa a ser um exagero... acho que temos de voltar a andar à porrada como no início ";O)))

é um grande texto do Pessoa!!!

zazie disse...

tinha de haver, sorry