«Não é outro a causa do teu mal; tu próprio és o teu inimigo.»
- Sófocles, Édipo Rei
Para nós, portugueses, tão grave quanto a nossa falta de auto-estima só existe uma coisa: a nossa falta de auto-crítica.
Parece um paradoxo mas não é.
O caso, tudo o indica, é que muito poucos querem ser portugueses agora, no presente. Uns porque, pura e simplesmente, não querem ser portugueses, isto é, querem ser estrangeiros ou imitá-los religiosamente -são os assimilados, tal qual eram os pretos mais evoluídos das nossas antigas colónias; outros porque querem ser portugueses do passado; outros ainda porque não sabem o que querem, se é que querem alguma coisa fora do seu perpétuo êxtase umbilical - sendo que o umbigo, não raras vezes, serve de esgoto à vesícula. Existem também umas espécies mistas -dos que querem ser estrangeiros no passado e dos que querem ser estrangeiros no futuro - que consideraremos, por economia de texto, implícitos às duas primeiras.
Daqui, como é fácil de ver, resulta não o paradoxo, mas o quotidiano: o ser português aqui e agora, em plena tempestade, à beira do abismo não lhes interessa. Por um lado, só lhes merece desdém, sobranceria, rancor, quando não ódio declarado (e daí a falta de auto-estima); por outro, na medida em que não pertencem, em que não se integram no cenário, nunca se sentem minimamente responsáveis nem são, por inerência, em modo ou tempo algum, passíveis de reparo (e daí a ausência de auto-crítica). O país vê-se assim perspectivado ou dum promontório alienígena ou dum pedestal alienado.
Não deixa de ser curioso que todos eles - os que querem ser estrangeiros, os que querem ser passado e os que não sabem o que querem porque querem tudo e mais alguma coisa -, concordam num aspecto fulcral: o sórdido presente do país não é consequência nem do estrangeiro, nem do passado, nem da preguiça volitiva congénita ou da cobardia instituída. Não, dir-se-ia que este presente infame eclodiu por geração espontânea ou por acção exclusiva daquela meia dúzia de irredutíveis que não quer, nem hoje nem nunca, fugir para o passado, nem para o estrangeiro, nem para uma contemplação maravilhosa do umbigo.
Quer dizer, há uma unanimidade em toda esta gente na desestima do Portugal presente e na crítica desapiedada aos desgraçados portugueses que ainda resistem e, por conseguinte, devem ser responsabilizados. Atente-se em como se produz o inefável concílio: para os estrangeirados a culpa é dos nacionais; para os passadistas a culpa é do presente; para os umbiguistas a culpa é dos outros.
Cumpre assim perguntar: afinal, quem são estes portugueses detestáveis do presente - os tais que não se refugiando no estrangeiro, no passado ou no umbigo, arcam com as culpas pelo Calvário acima?
Bem, certamente que não são as elites. Essas, como lhes compete e é apanágio da horda há uns séculos a esta parte, querem ser estrangeiras seja lá de que maneira for - no presente, no futuro ou no passado, mas estrangeiras. Maiores toca-pívias que as elites - do sucessozinho a qualquer preço, da vida fácil, do venha-a-nós - tenho sérias dúvidas que existam.
Também não são os agarrados da ordem - às telenovelas, publicidades, créditos e telechupetas todas que houver -, essa vasta chusma de migrantes/emigrantes, em acto ou potência, em catapulta ou lista de espera, no desemprego ou a borrarem-se de medo dele. Tais mamíferos de imitação, se as elites querem ser estrangeiras, então eles, por gana suprema, querem ser como as elites. E quando falam mal delas é, nitidamente, à maneira da raposa na fábula das uvas inatingíveis: "estão verdes, não prestam, só os cães as podem tragar."
O que é que sobra?
Sobra não sei exactamente quem, não sei exactamente como, nem sei exactamente onde, mas suspeito que, na realidade, não existe, e, se existe, então, seguramente, é uma espécie em via de extinção. Uma espécie que, com dificuldade crescente e algum desespero à mistura, luto por vislumbrar em mim próprio.
Talvez seja por isso, por gastarmos o tempo a aspirar ao que não somos e a deitar as culpas sobre algo que não existe, que acabamos por não viver nem sair de cima. Há lições que são eternas e vêm dos primórdios. Há verdades mais antigas que a nossa amnésia. Encontrar-nos-emos no lugar e na hora em que deixarmos de fugir de nós próprios.
Nem que seja para arrancarmos para sempre os olhos, por nos ser insuportável a visão do monstro em que nos tornámos.
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