quarta-feira, janeiro 19, 2011

Poder e Dever I. A escola




Sendo considerada uma das principais fontes do pensamento medieval, o Corpus Areopagiticum é integrado, entre outras, por duas obras muito sugestivas: o Da Hierarquia Celeste e o Da Hierarquia eclesiástica. Trata, aquela, das várias classes de anjos, arcanjos e serafins, na pirâmide celeste; como trata esta da correspondente pirâmide na terra. Dir-se-ia que a Terra espelha o céu. Ou deveria espelhar. No meio disto tudo há Cristo que faz a mediação e um tipo que estabelece a ponte entre os dois domínios (ou "cidades" como lhe chamará Santo Agostinho, mais adiante), e por isso se apelida de "Pontífice" - Sumo Pontífice. Num certo sentido, Cristo advoga-nos no Além, como o Sumo-Pontífice advoga o Além/Cristo entre nós. E por isso também lhe chamam Vicário.
Hoje sabemos que além destas hierarquias entre os anjos e entre os homens, existe uma terceira (que o Pseudo-Dionisio, eventualmente por falta de tempo, não referiu). Poderíamos chamar-lhe Da Hierarquia bestial. Os cavalheiros da zoologia chamam-lhe a pirâmide da predação, ou cadeia alimentar, ou qualquer coisa do género.
E a verdade é que não existe apenas uma ordem - uma organização de poder e poderes - entre os anjos (vamos admitir que sim), ou entre os homens. Há hierarquia entre os anjos, como há hierarquia entre as formigas, as ratazanas, as hienas e as hordas simiescas. Há uma ordem no Céu, mas há igualmente uma ordem na Terra. Existem regras. Que uma formiga operária ou uma formiga soldado não discutem; que um grupo de ratazanas entende na perfeição; que uma horda de chimpanzés trata de desempenhar com a gritaria inerente à espécie. E nós, no meio disto tudo? Entalados entre os anjos e as bestas, fazemos como?
Quando me dizem "o poder é uma construção estrita do homem", qual poder? O legislativo, o executivo ou o judiciário? Mas a humanidade principiou com a Revolução Francesa ou mesmo com o nascimento de Cristo? O poder é a última moda do nosso aleive mais bem armado? O poder mata mais branco? Inventámos o poder?
Aristóteles, que era pouco dado a utopias, decifrou-nos com lucidez e simplicidade: "o homem é o mais imitador de todos os animais e, por imitação, apreende ele as primeiras noções..."
Se sabemos que é assim, então impõe-se-nos a questão: em que escola do poder é que nós aprendemos? Vêm-me, assim de repente, à memória as Fábulas de Esopo...
Mas é claro que nisto, como em tudo, há excepções. Acredito que o antepassado do amigo Despastor tenha fugido ao rebanho da espécie. Até parece que estou a vê-lo, diante dum Dente-de-Sabre que se refastelava com um dos seus companheiros, arengando do cimo da árvore, com alacridade, aos restantes estarrecidos:
«Malta, não há que ter medo, o super-felino não tem poder nenhum. Nós, um dia destes, é que vamos inventar o poder, Pois, pá, camaradas, é como vos digo: numa selva privada, num parque exclusivamente nosso a que chamaremos civilização e depois duma série de revoluções! Está no papo. É só o tempo de nos tornarmos os protagonistas desta cegada toda!»
Mas nisto rebentou um vulcão nas imediações, e fugiram todos. O Dente-de-Sabre incluído.
De então até hoje, como é sabido, lá foram decorrendo peripécias e fragilidades... Como o canibalismo, por exemplo. A propósito, sabem como é que se identificava o chefe da horda canibal da época seguinte: era aquele que vestia a pele do Dente-de-Sabre. Ainda hoje não andamos muito distantes disso.

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