sábado, janeiro 22, 2011

Diálogo para Lá das Nuvens




Deus
- Então, Serafim, vens de auréola murcha. Como se alguma desolação ou triste espectáculo te atormentasse...

Serafim
- É verdade Senhor. Venho da Terra...

Deus
- Os malucos da galáxia... Humm, que houve agora? O que é que aprontaram esses malandros desta vez? (À parte) Como tu bem sabes, Eu sei, sei tudo, estou farto de saber,a eternidade inteira, embora com esses tipos não haja Previdência que resista, mas, enfim, a bem, da conversa, convém que te submeta a este interrogatório. Convém-me avaliar da tua atenção e perspicácia na observação da balbúrdia. Faz parte do teu exame para Trono.

Serafim
- Senhor, é o seguinte: As águias já não voam, os tigres já não caçam, os tubarões já não nadam, os elefantes fazem de estátuas, os ventos já não sopram, o mar está mais hirto que um penedo, as árvores nem respiram e até o sol e as estrelas se apagaram. Em resumo: está tudo petrificado e às escuras.

Deus - Belo. E a que se deve tamanha interrupção geral das actividades?

Serafim
- Foi um tipo, um dos doidos. Tomou o Poder como refém e fechou-se, hermeticamente, num alambique subterrâneo. Decretou que o poder é uma construção estritamente sua (dele, portanto, com s minúsculo) e despejou todo o universo. A própria lua está escondida em parte incerta, impedida de influenciar marés, sementeiras ou partos. Mesmo a morte poisou a foice e está sentada numa tartaruga: como nada vive, perdeu toda a clientela. Excepto o doidivanas, claro. Mas "fraca colheita!", lastima-se ela. "Que mérito haverá em finar uma quimera que já se enterra em própria vida?... Aliás, mais lembra o competidor, que o cliente!"

Deus
- Humm... uma minhoquice dessas, tamanha regressão ao trogloditismo lá há-de obedecer, se bem os conheço, a aturado cálculo. Que justificação apresenta a criatura para tão alucinada peregrinação?

Serafim
- Certifica, com carimbo e assinatura reconhecida, que o poder provém todo do baixo e desprezível, e ainda bem que é assim.

Deus
- Logo vi que era coisa desse gajo. Que anda ele agora a minar lá em baixo?

Serafim
- Em bom rigor, anda em alta. Na Alta Finança!...

Deus
- Divertem-me os nomes que esses malucos desarrincam. Alta Finança é um oximoro da excelência duma feliz desgraça, dum píncaro abissal ou até duma jovem múmia. Que momos pantomineiros! Uns pândegos!...

Serafim
- Pois, Senhor. E quanto mais o "baixo e desprezível" ascende na Alta, mais o tal alucinado se afunda pelo chão adentro, bordando lúgubres oximoros conceptuais e tricotando analogias deveras pimponas. Como por exemplo que é uma coisa frágil toda poderosa.

Deus
- Desde que financiado pelo "baixo e desprezível" que anda a galope na Alta Finança, suponho.

Serafim
- Exactamente, Senhor. Porque a Vós e à Natureza por Vós criada, em matéria de Poder, ele não deve nada. A construção é toda dele.

Deus
- Por acaso não lhe perguntaste, se o poder é só construção humana, onde raio foi ele buscar a faculdade de construir?...

Serafim
- Acho que responderia, por força da oximoromania, a Vós e à Natureza.

Deus
- Portanto, deve-Me a arquitectura mas a construção é exclusiva dele...

Serafim
- Sim, dele e do crédito financeiro do "baixo e desprezível".

Deus
- Então não sendo ele o autor do edifício, nem o fornecedor dos meios materiais, é apenas o operário da construção.

Serafim
- Luminosas palavras, Senhor.

Deus - Ora, sendo o "baixo e desprezível", por natureza, o "destruidor", estar-lhe-à a fornecer meios para a execução da minha arquitectura ou da sua demolição?

Serafim
- Já está tudo petrificado (ou betonizado, se calhar) e às escuras, Senhor. Que criatura estouvada!... Acha que é tudo à vontade dele, quando cada vez é menos tido e achado nas lógicas da transacção! Quando o move cada vez mais o automatismo. Esqueceu os princípios, perdeu de vista a finalidade, entrega-se, sem alma nem coração, à edificação de escombros e entulhos.

Deus
- Mais um desses nihilistas do cuspo e argamassa, por certo!.. Algum Henrique Raposo, queres ver...

Serafim
- Não, Senhor. Este proclama-se católico.

Deus
- Valha-me Eu Próprio! Mais isso já vai aí: os tipos já nem o Padre Nosso conhecem?!...

Serafim
- Sim, e vai mais longe: diz que o cristianismo também é uma construção, neste caso intelectual, dele. Já que a outra construção, a do Poder, será mais manual, visceral ou intestinal. Às tantas, nem se percebe bem se constrói ou simplesmente evacua. E quem diante de tal presépio ouse levar os dedos ao nariz, ele excita-se, abespinha-se muito e taxa de utópico.

Deus
- Despeja, não restam dúvidas. No seu duplo sentido: evacua sem pejo algum.

Serafim
- O facto é que já aqui há tempos, disse-me um arcanjo, num outro acesso de excitação mimosa, esta mesma criatura tinha inventado o cristianismo ronaldo. Este, agora, parece ser mais a atirar para o cristianismo revolucionário, ML Tdi.

Deus
- Um cristianismo arranha-céus!... Está-lhes sempre o pé a fugir para a Babel!...

Serafim
- Se bem que, desta vez, tudo o indica, pareça haver concurso duma outra má influência: um tal Bushmills. Ao que pude apurar, uma zurrapa estupefacciosa resultante da destilação clandestina de Bush-Pai, Bush-Filho e Bush-Espírito Santo e Comercial de Lisboa, processada algures entre Sacavém e o Vale Escuro.

Deus
- E que moral retiras tu de toda essa deplorável mistificação, ó Serafim?

Serafim
- Que as construções são tanto dele como qualquer edifício pertence aos trolhas que o erigem. E que o mundo é como um espelho: se um trolha nele se reflecte, não há-de nunca ver um anjo - só há-de ver paredes e muros; andaimes e ferramentas.

Deus
: Muito bem. E há também umas sábias palavras que convém recordar: quando vieres apontar um argueiro na vista alheia, cuida para que não te apresentes com um barrote na tua.

Não aconteça que to extraiam com delicadeza apenas para to espetarem pelos fundilhos... Com justa e áspera brusquidão, digo eu.

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