Introdução.
Tu, meu rapaz, que tens uma sólida formação moral, bons sentimentos e lês Nietzsche (confessou-mo a tua pobre mãe, preocupada), procuras na luta um campo de honra, um ordálio privado de virtudes e coragem. Isso é muito digno e atesta eloquentemente da tua qualidade masculina. Mas não te iludas: os teus futuros adversários pertencem, regra geral, a outro escol. O seu intuito é puramente calhorda, alvar, bandalhabundo. Ardem numa mera sofreguidão de se eximirem das frustrações e do mau carácter congénito. Ou então é puro exibicionismo, macaquice de filmes que lhes devastaram a mioleira. O teu dever, nunca o esqueças, é ajudá-los, conduzi-los nessa odisseia desconchavante. Não sendo do teu nível, não caias na asneira de lá desceres. Guia-os apenas. Providencia para que se espanquem a eles próprios. Empresta-lhes, quão somente, os teus punhos e patadas para tão caritativo efeito. Não te oponhas nem obstines; acompanha-os, facilita-lhes a tarefa. Permite que alcancem tão sadio desiderato. É uma aprendizagem que lhes compete exclusivamente.
Se te sacrificares, servindo de bombo, nada aprenderão. Se os sacrificares, moendo-lhes o coiro, ficar-te-ão eternamente gratos, olhar-te-ão com respeito e recordar-te-ão cheios de reverência.
Eles, bem no fundo, não o sabem; mas vão ali para aprenderem um pouco de humildade, para compensarem –duma forma brutal, é certo, mas é a única que os alcança – as falhas e tibiezas da educação moderna. Não hesites: educa-os. A sova, digo-to eu, pode ser uma das mais sublimes formas de altruísmo.
Para o efeito, aqui te deixo alguns preceitos que julgo pertinentes e de comprovada utilidade. A mim, pelo menos, ao longo duma vida que, como bem sabes, foi repleta de aventuras, combates e solavancos, ajudaram-me a manter o arcaboiço intacto e o frontispício indemne.
PRECEITOS
1. Em tese, o teu adversário é um ser humano. Em tese, repito. Porém, como o ringue não é propriamente o local adequado para prolegómenos a qualquer tipo de metafísica, o melhor mesmo é pensares nele como um réptil execrável que se propõe danificar-te o canastro e amarrotar-te o ego. Não deixes.
2. Usa a cabeça . Dá-lhe com ela. Com o osso frontal, mais precisamente; no nariz, na boca, nos malares, é tudo boa colheita.
3. Usa também a cabeça dele. De preferência com os teu pés. Mas não te arrisques em acrobacias supérfluas. Procura primeiro desequilibrá-lo, fazê-lo estatelar-se ao comprido no tapete. Uma vez aí, devidamente acondicionado, poderás pontapeá-lo com bem maior precisão e segurança.
4. Nunca tenhas pena antes de lhe bater. É um absurdo. Massacra-o. Põe-no feito num Cristo e então, então sim, quando ele estiver a ser levado de maca, pára de lhe bater e assume uma fisionomia piedosa.
5.Sê generoso. Quando lhe puderes dar três, não lhe dês apenas duas. A avareza é própria do banqueiro, não do lutador. Além do mais, em estando a distribuir fruta nunca te ponhas com mesquinhices.
6. Sempre que possível, tenta perceber onde lhe dói mais. É aí que lhe deves bater.
7. Não te desgastes inutilmente. Marimba-te no espectáculo e no rococó técnico. Não enfeites. Lembra-te: o objectivo é dares-lhe porrada, não é armares em decorador.
8. Prefere sempre a demolição metódica ao ballet. Nunca confundas um ringue de cacetada com o "Lago dos Cisnes".
9. Cuidado com o sangue dele. Caso esparrinhe, não te ponhas a bebê-lo, entoando bramidos selvagens. Não é prudente. Os antigos faziam-no como acção psicológica, de modo a estarrecer o inimigo. Mas os antigos desconheciam a Sida e a Hepatite B. Felizardos!...Podiam lutar em paz e harmonia. Lutar e ir às putas.
10. As regras são muito lógicas e bonitas para os árbitros e os juizes, porque essas criaturas não estão lá dentro a enfardar. A única lei de ouro que deves ter sempre presente é a seguinte: Entre a tua pele e a regra, sacrifica a regra. Vai por mim, que sou mais velho: é mil vezes preferível seres penalizado (ou mesmo desclassificado) que seres sovado.
11. As manhas e astúcias do ser humano são inúmeras, como a História Universal documenta. As dos répteis ainda são maiores e é a própria Bíblia Sagrada que nos coloca de sobreaviso. Fingem muito. Em caso de dúvida (nunca te esqueças que pode ser simulação), bate-lhe.
12. Em teoria, não deves recorrer a golpes baixos. Em teoria, este também é o melhor dos mundos. É fácil, portanto, constatar que as teorias são muito falíveis. Não obstante, quando lhe acertares nos tomates, usa da maior descrição. Por precaução, fá-lo sempre como que por inadvertência, não vá o árbitro reparar.
13. Nunca te emociones. Se lhe partires um braço, deixa que seja ele a gritar, a queixar-se, a chorar, enfim, a fazer todas aquelas cenas lastimáveis e indignas do varonil garbo.
14. A tua professora, caso venha a sabê-lo, dir-te-á que estes preceitos são bárbaros e anti-desportivos. É provável. Também é certo que a criatura é campeã e atleta de renome. Mas diz-lhe, da minha parte, que no dia em que eu me der ao desplante de leccionar seminários sobre as dores de parto, ela, gentil menina, virá ilustrar-me, de cátedra, sobre guerra e pancadaria. Mas até lá...
4 comentários:
ahahahhahaha, que maravilha! ":O))))
"Marimba-te no espectáculo e no rococó técnico. Não enfeites. Lembra-te: o objectivo é dares-lhe porrada, não é armares em decorador."
ai o fronstispício looooolll
Posso guardar, meu malandro? ":O)))
Essa é uma pergunta retórica, ó Zazie. :O)
não é nada retórica. Parece mas não é que eu sou mesmo assim nestas coisas. Nem foto tiro, quanto mais texto ":O)))
É para mostrar ao pinguim ";O))
Agradeço-lhe Dragão,por mais um texto maravilhosamente concebido que, neste caso, posso afirmá-lo com segurança, me é dirigido. E apesar de alguns dos preceitos serem, dentro do ringue, proibidos por regras ridiculas, que impedem um artista de se expressar livremente, os seus conselhos só pecam por virem demasiado tarde, já depois de eu ter entrado naquele ringue ingénuamente entusiasmado por participar no evento desportivo e esperando que este que seria o meu primeiro combate fosse disputado com desportivismo por ambos os competidores e de o ter perdido contra um tipo que rapidamente constatei tratar-se de um grandecissimo filho da puta, não um com inteligencia, metodo e precisão(como é o caso do Dragão) mas sim um trapalhão sem qualquer tecnica, o que duplica em valor a minha derrota. Mas enfim, vejamos a coisa pelo lado positivo: comecei do fundo e agora o único caminho é para cima(é claro que há a hipótese de eu permanecer no fundo, mas depois destes conselhos só não sucede quem não quiser).
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