«A partir de Verdun, que os alemães baptizam de Batalha do Material (Materialischlacht), o paralelismo instituído pela cavalaria entre as formas do amor e da guerra parece dissolvido.
Sem dúvida que o fim concreto da guerra foi sempre o de forçar a resistência inimiga, destruindo as suas forças armadas. (Forçar a resistência da mulher pela sedução é a paz; pela violação é a guerra). Mas não se destruía por isso a nação que se desejava subjugar: bastava reduzir as suas defesas. Batalha organizada contra um exército profissional, sítio das fortalezas, captura do chefe: um sistema de regras precisas, portanto uma arte, designava o vencedor. E este vencedor triunfava sobre algo vivo, um país ou povo ainda desejáveis. A intervenção duma técnica desumana que mobiliza todas as forças dum Estado mudou a face da guerra em Verdun.
Porque a partir do momento em que a guerra se torna "total" –
e já não apenas militar – a destruição das resistências armadas significa o aniquilamento das forças vivas do inimigo: operários mobilizados nas fábricas, mães que procriam soldados, em suma, todos os "meios de produção", coisas e pessoas equiparadas. A guerra já não é uma violação mas um assassínio do objecto cobiçado e hostil –quer dizer, um acto "total", que destrói esse objecto em vez de se apoderar dele. Verdun, de resto, não foi mais que um prólogo a essa guerra nova, pois que o processo se limitou à destruição metódica dum milhão de soldados, não de civis. Mas esse Kriegspiel permitiu o aperfeiçoamento dum instrumento que, posteriormente, se viria a achar habilitado a operar em campos bem mais vastos, como Londres e Berlim; já não apenas sobre a carne para canhões, mas sobre a carne que fabrica os canhões, o que é evidentemente mais eficaz.
A técnica da morte a grande distância não encontra o seu equilíbrio em nenhuma ética imaginável do amor. É que a guerra escapa ao homem e ao instinto; volta-se contra a própria paixão de que nasceu. E é isso, não a envergadura dos massacres, que é novo na história do mundo.»
- Denis de Rougemont, "O Amor e o Ocidente"
Esta é uma obra que recomendo vivamente. Além de muito bem escrita, na forma, palpita igualmente de relâmpagos deveras interessantes, no conteúdo. A perspectiva do autor, que vislumbra um paralelismo entre as formas do amor e da guerra ao logo da história do Ocidente (entre os séculos XII e XX), descobre no surgimento da "guerra total", ou "técnica da morte a grande distância" –a que eu chamaria "tele-guerra" (ou traduzindo: guerra telecomandada, gerida à distância)-, o princípio da "dissolução das formas instituídas pela cavalaria".
Quer dizer, a guerra, ao deixar de cumprir, transpondo, as regras de sedução e conquista inerentes ao amor cavalheiresco, desembaraça-se duma série de escrúpulos pouco rentáveis e cada vez mais obsoletos (tendo em conta dtoda uma nova concepção de mundo emergente e triunfante –a burgueso-científica).
Rougemont é, de resto, deveras ilustrativo quanto a isso:
«Cerca do fim do século XIX, o amor havia-se tornado, nas classes burguesas, uma estranha mistura de sentimentalismo à flor da pele e de histórias de rendimentos e de dotes: o que não deixou e ser ainda hoje em dia nos anúncios matrimoniais. A sexualidade pura só intervinha para "perturbar" esses pequenos cálculos e esses "belos sentimentos" de série. (...) Do mesmo modo, a guerra era um composto de excitações da opinião pública –que é a "desforra", senão um sentimentalismo nacional? – e de planos comerciais ou financeiros. O elemento propriamente guerreiro já aí não tinha lugar, a não ser como contrabando. A guerra emburguesava-se. O sangue comercializava-se. O tipo do militar surgia já como uma anomalia aos olhos dos realistas ou como uma sobrevivência lisonjeira aos olhos das mulheres e dos papalvos curiosos. (Por isso as democracias se excitam a propósito dos casamentos dos príncipes).
E julgava-se poder liquidar sem dano o formidável potencial de frenesi e de grandeza sangrenta que séculos de cultura e de paixão haviam acumulado no Ocidente.
A guerra de 1914 foi um dos resultados mais notáveis desse desconhecimento do mito.»
De realçar que Rougemont escreve em vésperas da Segunda Grande Guerra.
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