«(...)Eu queria-me entender com o sr. Deputado, a fim de tirarmos algum proveito deste debate; mas S.Excª, pelos modos por me ver assim minguado de afeites poéticos, acoima-me de absurdidade, e despreza-me!...Valha-me Deus! Se o sr. dr. Libório me não lançasse da sua presença com tamanho desamor, havia de perguntar-lhe por que foram Atenas e Roma bem morigeradas quando pobres, e corrompidas quando ricas e luxuosas. Havia de perguntar-lhe que artes e ciências progrediram entre os Sibaritas e Lídios, povos que a mais elevado grau de luxo subiram. Havia de perguntar-lhe por que foi que os Persas acaudilhados por Ciro, cortados de vida áspera e privada do necessário, subjugaram as nações opulentas. Havia de perguntar-lhe por que foram os Persas, logo que se deram às delícias do luxo, vencidos pelos Lacedemónios.
A suprema verdade, sr. Presidente, a verdade que os arrebiques da retórica não sofismam é que, à medida que os impérios antigos se locupletavam, o luxo ia de foz em fora, e os costumes a desbragarem-se gradualmente, e o pulso da independência a quebrantar-se, e os cimentos das nações a estremecerem. Depois, era o cair do Egipto, da pérsia, da Grécia e Roma. »
- Camilo Castelo Branco, "A Queda dum Anjo"
O diagnóstico é de 1866. Fá-lo Camilo pela boca do seu personagem, o debutante e "incorruptível" Calisto Elói. A obra, a muitos títulos notável, esboça um retrato desapiedado dum parlamentarismo à portuguesa, já naquela data convertido em colmeia de estrangeirados, parasitas, sanguessugas e similares.
Mandando também eu às malvas os "arrebiques da retórica", digo que o nosso Camilo, que de burro não tinha nada, não pôs o dedo na ferida porque esta geralmente até reflecte dignidade, luta ou sacrifício, mas pô-lo certamente no líquido fétido e purulento que preenche os furúnculos ou as gangrenas. Ontem como hoje.
A corrupção, aliás, desde sempre, serviu (e serve) à mesa do luxo. Naturalmente, propaga-se em forma de cascata: desde os que se empanzinam, lá no alto, de caviar até aos que rapam as migalhas, lá debaixo.
1 comentário:
Pois meu caro Dragão...nem de propósito! Ando a reler de há uns dias a esta parte e a horas mortas, a obra do grande escritor. VOu a meio, mesmo no ponto em que o bravo Calisto se deixa decair naquilo que é mais terno e imprevisível para um homem: o amor por uma mulher! Camilo introduz o coup de foudre num parágrafo breve:" Eis que, a súbitas, do coração de Calisto ressalta a primeira faísca de amor!"
Na verdade, a escrita camiliana, de rajada e pejada de termos esquecidos, é um manancial para a escrita gongórica. Os discursos inflamados de Calisto Elói, na Câmara, já de si mesmos rebuscados e enroscados em termos dignos da pose de gravitas de um Guilherme Silva dos tempos antigos, conseguem ainda assim ser suplantados com grande souplesse pela retórica de outro tribuno de palavras ocas: o dr. Libório de Meireles!
Essa é que foi a corrupção no espírito de Calisto! E que o fez cogitar :
" Que te valeram as máximas de boa vida colhidas a centenares nos teus clássicos, e enceladas nessa alma, refractária à ternura de tanta moça escarlate e sucada, que, lá em Cçarelhos, se enfeitava para achar graça em teus olhos?
Cairias tu nas pioses desta princesa dos mares, desta Lisboa que filtra aos nervos dos seus habitantes o fogo que lhe estua nas entranhas?"
Ora aqui, Calisto esvai-se dos brios e entreva-se naquilo que a muitos já atingiu como um raio! Os sinais dá-os Camilo, a fls. 141: " CAlisto dormiu mal. AS alvoradas de um dia feliz são mais temporãs que as da estrela de alva. O coração acorda primeiro que os pássaros.O amor diz o seu fiat lux primeiro que Deus."
Tirando estas passagens de romance com destino certo, há uma que me enternece sobremaneira, e é esta:
"Num intervalo, saiu Calisto Elói do camarote e, como não encontrasse no pórtico nem nos corredores o risonho deputado portuense, entrou à plateia.
Avizinhou-se de Libório, que o encarou com semblante de cor incerta.
-O colega por aqui?- disse o doutor- Reminiscências me não acodem de havê-lo visto na plateia!
Calisto, sem o fitar no rosto, respondeu:
- Venho ver as dimensões das suas orelhas.
- COmo assim!...balbuciou Libório.
- Tenciono puxá-las até á boca, no propósito de tapar com elas um riso alvar que vossa mercê tem, e que me incomoda grandemente. Veja lá se a operação lhe convém aqui ou lá fora.
- Não compreendo a razão do insulto.
- Será lá fora- concluiu Calisto e saiu.
A gente que rodeava o doutor portuense comportou-se bem:cada qual dizia de si para consigo que, se o caso fosse com ele, o provinciano engoliria a injúria com uma bala; assim, como não era com eles o caso, Calisto mereceu a Deus a felicidade de não ser varado por balas.
O que se passa como certo é que Libório nunca mais franziu um riso voltado para a frisa de Ifigénia."
Desculpa a longa transcrição, mas não resisti a esta prosa que já não há. E a corrupção já era.
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