quinta-feira, julho 29, 2004

Pequena achega - acerca do "Liberalismo Científico"

Tendo sido invocado o meu tenebroso nome por uma das partes, vejo-me forçado a vir à liça.  O campo de batalha  promete: Dum lado estão os digníssimos "Blasfemos", vítimas de longa data do meu mau feitio e cepticismo galopante; do outro, os não menos ilustres Irmãos da Grande Loja.  Parece que ultimamente (quanto a mim, mais por efeitos de propaganda que por convicção profunda) alguns dos Blasfemos, segundo a Loja, andarão a exagerar nos fundamentalismos ideológicos, os quais, deparados assim de chofre e sem uma certa condescendência estival,  poderão indiciar uma utopia das perigosas.
Tratando-se de dois blogues por quem nutro  consideração e inerente urbanismo (na verdade, admito, os únicos "blogues mainstream" que me dou ao trabalho de ler), desço à liça, mas sem tomar partido no litígio. Saúdo apenas os litigantes, exorto-os a que não esmoreçam, que  aprofundem a esgrima e, em prol disso, deixo apenas uma pequena achega. Julgo que é capaz de ser interessante e merecer alguma ponderação das partes. Ou então não. Os gajos não me ligam pevas e eu vou pregar aos peixes.
Não obstante, mesmo correndo esse risco, aqui fica o texto (desconfio que, parte dele, até já o terei postado antes). Reza assim:

«Os quarenta anos que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial foram ocupados por um conflito global entre duas ideologias iluministas - o liberalismo e o marxismo soviético. Ambas estas doutrinas emanam do âmago da "civilização ocidental". Tanto o marxismo clássico como o comunismo soviético foram florescimentos serôdios de antigas tradições ocidentais. Os seus fundadores e seguidores viam-se, com razão,  como herdeiros de uma tradição que incluía as teorias económicas clássicas de Adam Smith e de David Ricardo e as filosofias de Hegel e de Aristóteles. O conflito entre o comunismo soviético e as democracias liberais não foi um choque entre o Ocidente e o resto do mundo. Foi uma desavença na família das ideologias ocidentais.(...)

Como a utopia imaginada por Lenine, o mercado livre global procura dar corpo a um sistema que nunca existiu até agora na sociedade humana e que transcende em muito o mercado livre inglês de meados da época vitoriana e a ordem económica liberal internacional que existiu até 1914. No quadro do mercado livre global, o movimento das mercadorias, dos serviços e do capital não é perturbado por controlos políticos impostos por estados soberanos e os mercados foram sendo deslocados das suas culturas e sociedades originais. Esta é uma utopia divorciada da história, hostil às necessidades humanas vitais e, por fim, tão autodestrutiva como qualquer das outras que foram ensaiadas no nosso século. (...)

O mercado livre global é uma utopia pós-totalitária. (...)

Tanto o sistema soviético como o mercado livre são ensaios de racionalismo económico. Os arautos do mercado livre dizem-nos que os níveis de produtividade sem precedentes de um sistema económico racional extinguirão as causas dos conflitos sociais e da guerra. O marxismo soviético costumava assegurar-nos que a planificação socialista faria da escassez um conceito do passado. Ambos nos dizem que o aumento da produtividade resolverá por si só a maior parte dos problemas sociais e exaltam o crescimento económico acima de quaisquer outros propósitos ou valores.
Como os bolcheviques, as tropas de choque do mercado livre são decididamente hostis a qualquer tradição que considerem um obstáculo aos seus conceitos de progresso económico. Se os seus objectivos exigem o sacrifício de algumas culturas que se ergam no seu caminho, os adeptos do mercado livre não hesitam em pagar tal preço. (...)»
   - John Gray,  "False Dawn" (Trad. port."Falso Amanhecer", da Gradiva)

É a voz dum entendido. E é uma obra extremamente didáctica que não me canso de recomendar. Mas, mais que concordar cegamente ou discordar veemente, importaria pensar sobre as questões que coloca. A principal delas: se fará ou não sentido aquilo que afirma.

 



3 comentários:

zazie disse...

Ahahahaha “blogues mainstream” este gajo é um caso “:O))))


o espírito científico sempre exigiu muitos sacrifícios... ";O)

zazie disse...
Este comentário foi removido por um gestor do blogue.
Anónimo disse...

Uma idéia que repugna à primeira vista, na verdade! Há um livro -- que circula muito pouco, diga-se! -- escrito por Immanuel Walersteibn, Após o Liberalismo, que mostra como conservadorismo, liberalismo e socialismo podem ser, afinal, apenas variantes da mesma ideologia (iluminista/racional/modernidade. Uma pseudo luta entre elas terá permitido a sua sobrevivência...na forma de «estado».
De qq forma, o debate avizinha-se do fim: já talvez tenhamos ultrapassado a bifurcação que antecede o caos. Après Bush...