domingo, julho 11, 2004
A Estética do Massacre. I. - O Horário
É do massacre que vos quero falar.
Imaginemos que dispomos dos meios e autorizações necessárias: os helicópteros, os rocketes, as metralhadoras, um grupo de amigos, napalm qb, bebidas, cigarros, comunicações... e um alvará, claro. Essencial, o alvará. Dá muito jeito. Poupa-nos a muitas chatices, depois do serviço feito. Um ror de tempo perdido em tribunais, pelo menos.
Pois bem, reunidos os agentes, passamos à acção. Saímos pela manhã, manhã cedo - de madrugada, como na pesca. A literatura especializada é unânime: a melhor altura do dia para o massacre é a aurora. Alguns entusiastas preferem o crepúsculo; outros, mais barrocos, sustentam que não há como a noite para disfrutar da beleza das chamas, do contraste feérico das labaredas recortadas no negrume cósmico; mas nós, tradicionalistas, preferimos aparecer ao nascer do sol, ainda ele, astro petiz, solta os primeiros vagidos. Isto, também, porque há que ter alguma consideração por aqueles que vamos massacrar. Os massacrados -a que chamaremos "eleitos"-, tanto quanto os massacrantes, são essenciais para um massacre. Indispensáveis, direi mesmo. Ora, alguns teóricos, aqueles que atrás referi, arrebatados por delírios cinematográficos, rendidos a encenações bizarras e embeiçados por efeitos especiais, parecem esquecê-lo. Mas não deveriam.
Em primeiro lugar, porque é uma questão de educação e civismo: não se exterminam pessoas ao fim do dia, extenuadas, carcomidas, derrotadas por mais um dia de trabalho; nem a meio da noite, quando repousam duma vida árdua e sonham, quiçá, com um mundo melhor, de descanso eterno. Não é correcto. Que diabo, o massacre deve ter regras; ou mesuras protocolares, no mínimo.
Em segundo lugar, porque é uma questão de eficácia: a tendência, por parte dos eleitos, para a debandada, para a fuga desordenada, para o desarvoramento espavorido, não é pormenor irrelevante. A noite, quer queiramos, quer não, favorece o eleito, protege a sempre contumaz e renitente vítima; dá-lhe cobertura nas suas escapadelas ao lugar da celebração. E quanto mais pequeno, pior. Dos infantis aos animais domésticos, mais de metade pisga-se ou esconde-se em parte incerta, em menos de nada. Nem há tempo para explicações: enchem-se de medo, dum terror palpitante, e fogem, escafedem-se a alta velocidade. Com a obscuridade por aliada, é garantido. Mesmo um bom cerco, decalque das melhores tácticas livrescas, não garante uma vedação perfeita do perímetro. Ora, um massacre caracteriza-se por não deixar sobreviventes, por ser definitivo e meticuloso. E, sobretudo, exemplar. Não é uma sórdida chacina, uma rusga trucidante ou morticínio avulso, improvisado. Não; requer método, planificação, sólido argumento. Evolui como um bom raciocínio, com a validade que só a completude permite. Não suja: limpa a paisagem. Devolve-a à Natureza primordial, ao silêncio dourado que só os passarinhos, tempos adiante, aos poucos, ousarão romper. Um massacre é assim, perfeito, total, sem excepções ou isenções de última hora. Por isso deve evoluir paralelo ao sol, porque, como este, quando acontece é para todos.
Mas a noite, como a penumbra e, às vezes, até o nevoeiro cerrado, acarretam ainda outros incómodos. Dessas maçadas e contratempos sobressai a forma desembaraçada como prejudicam a contabilidade do caçador, tanto quanto a mirada. Quer dizer, não só os eleitos fogem, como o operador tem uma certa dificuldade em lhes acertar. A munição tracejante e os dispositivos de visão nocturna sempre dão uma ajuda, mas isso não chega. Há sempre algum que se agacha, que se arrasta ou rasteja, mesmo ferido, impossibilitando de todo o tiro eficiente. E há até tresloucados, de espírito endemoinhadao, frenético, que desatam a correr aos ziguezagues. Ora, se de dia, numa manhã radiosa, com um céu limpo, já é trabalhoso acertar num gajo aos ziguezagues, imagine-se à noite, ao anoitecer, ou no meio do nevoeiro. Dá-nos cabo da vista. Em meia dúzia de operações, começamos a marcar consultas na oftalmologia, e damos connosco a usar óculos para atirar ao perto. Isto, quanto à pontaria.
Já no que refere à contabilidade, pior um pouco. Não é novidade nenhuma: Motivo de orgulho e ufania para qualquer profissional que se preze, o massacre convida-o à manutenção de registos actualizados, rigorosos, às marcas na coronha da arma, no cabo da faca, ou às cruzinhas ou decalcomanias macabras na fuselagem do helicóptero, do caça bombardeiro, do jeep, enfim. E ele não se faz rogado. Vive intensamente esse requinte aritmético. A cada nova marca é o seu curriculo que viceja, a sua carreira que avança. Com que volúpia o faz!...Todo o profissional tem os seus fetiches, pois claro. Mas ei-lo -espreitem agora com atenção, reparem bem nele - desvairado e enrodilhado nas trevas, a disparar quase às cegas sobre vultos fugazes que se esgueiram por entre sombras, ei-lo, coitado, mais os amigos dele, colegas de profissão, a torrar a eito tudo o que mexa -e que teima em mexer-se por mais orifícios e chumbo que carregue-, e, na hora do balanço, vá-se lá saber: quem matou quem? Foste tu, fui eu? Foi o Manel, foi o Francisco? Às tantas, zangas, amuos, discussões, querelas, litígio e, no meio dessa balbúrdia desnecessária, são mais dois ou três eleitos, daqueles que gemiam inacabados, que aproveitam a inusitada pausa nos trabalhos e, em rojos esforçados, pertinazes, lá se arrastam para fora do cenário. É mau para todos. Os que matam já nem reconhecem quem mataram; e os que morrem gastam um ror de tempo desnecessário para morrer e, para cúmulo, vão sujar de rastos e esqueletos as redondezas.
Por isso mesmo, por tudo isso, não há discussão: Saímos de madrugada, e não se fala mais disso.
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2 comentários:
O caro amigo, se me permite, não quererá corrigir a gralha nas metralhadoras?
Desculpe lá a observação, mas é pena aquilo num texto tão escorreito. Se quiser apagar esta nota depois (ou antes, o blog é seu, claro), esteja absolutamente à vontade.
Diz bem, ó C. Tem toda a razão. Só tenho que lhe agradecer. E se procurar melhor, ainda é capaz de encontrar pr'aí mais alguma.
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