quinta-feira, julho 15, 2004

A Estética do Massacre. IV - Impressões


Matar é um crime, dos mais hediondos, e até moralmente condenável. Ainda mais em se tratando de pessoas, ou até seres humanos. Mas exterminar, não. Na pior das hipóteses, é uma obrigação histórica, um requisito civilizacional. De resto,  a matar,  aprendemos com Caim, ou com qualquer dos seus epígonos,  por irradiação ou contágio transversal; a exterminar, bebemos o exemplo directamente de Deus e da Natureza, recebemos a inspiração do Alto. E do Fundo, desse ímpeto visceral que nos incendeia desde os primórdios.  Resumindo: para matar, arcamos com o "livre arbítrio" -e, claro está, com as consequências; para exterminar,  cingimo-nos ao "imperativo categórico" e, terminada a comissão de serviço, recebemos -alguns, os mais virtuosos- louvores e medalhas.
Filósofos também há que chamam à guerra a higiene dos povos. Devem estar cobertos de razão. Na certeza, porém, que o massacre é a higiene íntima das civilizações, a ablução perfumada das miudezas demográficas. A guerra sem o massacre seria o imperador sem a coroa, ou o trono sem as nádegas do imperador. No fundo, a guerra não é essência nem finalidade: é apenas  pretexto.  E a diplomacia, como dizia o outro, é igual à guerra. Só que mais elitista: aí, regra geral, não deixam brincar os generais.
O Homem, já dizia Aristóteles, é o mais imitador de todos os animais. Mas isso não significa que o homem se restrinja à imitação de outros animais que, distituídos de racionalidade, inteligência e regulamentos económicos, são claramente seus subalternos.  Os outros animais, autênticas bestas, também matam, mas exercem-no por razões meramente instintivas, egoístas e venais: matam para comer, sobretudo; matam para defender a prole ou para dar cabo das proles rivais, matam para se poderem procriar, enfim: matam alarvemente, à dentada, à patada - uma sensaboria! O homem é o único que mata duma forma artística,  quer dizer, extermina.  Desenvolveu meios e técnicas, inventou ferramentas, aguçou instrumentos e ganas. Mata livremente. Mata para redecorar a paisagem, para remobilar o habitat.  Mata por premente vocação estética.  "Esta cultura está démodé,  aquela aldeia fica ali mal,  e se pintássemos este vale de outra cor?" Difícil, mesmo, é ficar quieto. Impossível (há que reconhecê-lo)! Às vezes,  por via daquele tédio insuportável que só os artistas experimentam, cansa-se do louro das searas, a panorâmica parece-lhe estúpida com todo aquele amarelo a ondular, e que faz ele? A monotonia irrita-o? Nada que um simples fósforo, com aragem de feição, não resolva.  Num ápice, converte aquela marmelada toda, de espigas imbecis e monocórdicas, num pente zero moreno,  cor de cinza escuro.  Como resistir ao apelo cosmético? Basta-lhe a inspiração súbita e a obra acontece. Quem diz espigas, diz pessoas.  Um artista menor -um Van Gogh, um Da Vinci, um Picasso -, contenta-se com a tela, com o simulacro sublimado da coisa; um artista a sério não: tem que ir no próprio mundo, atira-se à cara, ao corpo, à pele, cabelo e unhas deste, e não descansa enquanto não o submete a uma plástica completa, a mises e manicures de raíz, a quadros impressionistas duma autenticidade arrepiante. Mas ainda vai a meio de um e já outro lhe ocorre, ou já outro da mesma igualha lhe propõe outro ou lhe disputa a mesmo, só que visto de outro ângulo.
O verdadeiro génio pinta Guernicas no próprio mundo e pinta-as não para as exibir numa galeria a meia dúzia de burgueses endinheirados, que olham para aquilo como olhariam para qualquer calhau brilhante e extra-duro,  mas para que Deus veja. Para que Deus contemple e reconheça o seu aprendiz pródigo, e se surpreenda com os seus progressos mirabolantes, com a sua  infatigável dedicação. Nós, operadores de massacre, iletrados e rudes,  sabemos, não obstante, isso - esse essencial, esse rudimento bastante de sabedoria. Daí trabalharmos com tanta alacridade. Daí a nossa presteza e gatilho pronto. Não temos dúvidas que somos nós a ponta fulgurante do pincel desses discípulos felízes, desses catecúmenos geniais da excelência transcendente. Por isso, sempre que entramos em acção, que a missão superiormente determinada nos convoca, temos a certeza de algures, da grande paleta do universo, estarmos a levar óleos e cores à grande tela que é o mundo, em prol dessa Obra-Prima que uma qualquer "Mão Invisível" (de que já falava Smith), por intermédio de nós,  patenteia.
E terminada cada pincelada, a sensação que fica, mais que de gozo, é de indescritível reconciliação cósmica. Em vez de "Satisfaction", trepidante, num qualquer tombadilho duma lancha rio acima, ocorre-nos "Wath a wonderful world", suave,  na voz gutural de Armstrong, sob um céu deslumbrante...E, intimamente, de olhos húmidos, trauteamos com ele:
 
I see trees of green, red roses too
I see them bloom for me and you
And I think to myself, what a wonderful world
 
 I see skies of blue and clouds of white
The bright blessed day, the dark sacred night
 And I think to myself, what a wonderful world
 
 The colours of the rainbow, so pretty in the sky
 Are also on the faces of people going by
I see friends shakin' hands, sayin' "How do you do?"
They're really saying "I love you"
 
I hear babies cryin', I watch them grow
They'll learn much more than I'll ever know
And I think to myself, what a wonderful world
Yes, I think to myself, what a wonderful world
Oh yeah

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