segunda-feira, julho 26, 2004

Ilusão... ou falta dela


«A minha primeira impressão, ao entrar no presídio, não podia ser mais repulsiva; mas não obstante -coisa estranha! - pareceu-me que se deveria viver ali muito melhor do que eu imaginara pelo caminho. Os presos, apesar de usarem correntes, iam e vinham livremente por toda a prisão, reuniam-se uns com os outros, cantavam, trabalhavam por conta própria, fumavam e até bebiam aguardente (apesar de estes últimos serem pouco numerosos) e alguns, à noite, jogavam às cartas. O próprio trabalho, por exemplo, não se me afigurava nada penoso, nem forçado, e só ao fim de muito tempo vim a dar conta de que o pesado e o forçado daquele trabalho não consistiam tanto na sua dificuldade como em ser imposto, obrigado, a golpes de varas. O camponês livre trabalha incomparavelmente mais, às vezes dia e noite, sobretudo no verão; trabalha com uma finalidade racional, o que lhe torna esse trabalho muito mais leve que ao presidiário o seu, imposto e perfeitamente initil para ele. Às vezes acontecia-me pensar que se alguma vez quisesse acabar para sempre, aniquilar um homem, castigá-lo com o castigo mais horroroso, um castigo que amedrontasse e fizesse antecipadamente tremer o criminoso mais endurecido, bastava dar ao seu trabalho uma inutilidade e carência de sentido total e absoluta. Apesar de o actual trabalho forçado estar isento de qualquer interesse para o preso, é, como todo o trabalho, razoável; o preso faz tijolos, amontoa a terra, faz a mistura, constrói; há uma ideia e uma finalidade em todo este trabalho. Às vezes o forçado afeiçoa-se à sua tarefa; aspira a realizá-la com mais destreza, mais depressa, melhor.  Mas se o o obrigásseis a vazar água deste recipiente para o outro e deste para aquele, apanhar areia, a mudar montes de terra deste sítio para o outro e vice-versa, estou persuadido de que o recluso se suicidaria ao fim de uns dias ou cometeria mil crimes para, ainda que à custa da própria vida, se ver livre de semelhantes humilhações, vergonha e escárnio.»
   - Dostoievski, "Recordações da Casa Morta"

Ao ler isto, ocorre-me sempre -vá-se lá saber porquê- a "caverna" de Platão. Hoje, ao escrevê-lo aqui, ocorreu-me também outra coisa... Que diz respeito ao Portugal actual, enquanto "construção colectiva": existe por aí alguma "ideia ou finalidade" racional?
Em suma: assistimos a um qualquer projecto arquitectónico, ou a uma simples guerra civil entre trolhas, amontoando tijolos e argamassas uns contra os outros?!...
Dostoievski chama-lhe "ideia e finalidade". Também poderia ser traduzido por "ilusão". Sob o efeito duma boa ilusão, até o pior presídio se tolera. Mas quando nenhuma ilusão já resiste, a violência começa a fermentar nas almas e a murmurar no horizonte.

 




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