Até há bem pouco, a orientação defecante das moscas nos mapas e até nas cartas militares era um enigma. Algo em África ou na América Latina as atraía inexplicavelmente. Por um qualquer estranho fenómeno magnético ou rede críptica de coordenadas sedutoras, era aí, nesses continentes azarados, que, 90% das vezes, iam depor os seus excrementos ignóbeis, poluidores. Nas restantes, por razões igualmente misteriosas, optavam pela Indochina. E era tudo.
Nós, operadores de massacre, de plantão à mundícia cartográfica, só tínhamos que comparecer à posteriori, de estojo de limpeza na mão. As moscas seguiam os seus caprichos diabólicos e nós seguíamos as moscas. Limpávamos a bosta que elas iam semeando, e que os generais, ansiosos de agradarem aos políticos, de lupa em riste, apontavam aos coronéis, inexoravelmente. Não há como um general, julgo que nem um falcão peregrino, para detectar uma cagadela de mosca num mapa. A escala deste é irrelevante. Para olhos menos garços e perscrutantes, a micro-bosta poder-se-ia confundir com uma aldeia, vilória ou lugarejo; em mapas de pequena escala, até com uma cidade do interior. Mas não para um general. Nunca, jamais. A cagadela, para ele, mente superlativa, é sempre cagadela, sem qualquer dúvida, sem a mínima dúvida, e mesmo em caso de dúvida. Sobretudo em caso de dúvida! Porque o cinismo demoníaco das moscas, insectos sobre todos execráveis, vai ao ponto de cagarem em cima de aldeias, vilas ou lugarejos, só para tentarem ludibriar os generais. Debalde; em se tratando de mapas, ninguém consegue ludibriar um general. Muito menos uma mosca. Porque tão mortífera quanto a sua visão aquilina (dele, general) é a sua lógica inoxidável: "se para limpar a cagadela tiver que se varrer a aldeia, varra-se. Cagadelas é que não!..."
Há uns anos atrás, por conseguinte, era simples. Os pilotos já quase sabiam o caminho de olhos fechados. E os helicópteros também. Seria, pois, África, Indochina, América Latina, um confim num rincão desses, de certeza. Não se admirem: O massacre, espécie sublime, pioneira, do turismo, também obedece a fluxos e -porque não dizê-lo - modas. Regra geral, até anda de braço dado com a descoberta. Não tinha, portanto, que enganar. Rumaríamos alegremente - trocando piadas, graçolas ordinárias, galhofas de mau gosto -, direitos a uma aldeola qualquer perdida no verde luxuriante da beira-rio, entre vales ou arrozais, às vezes também em planaltos húmidos, enevoados, envoltos naquela neblina fantasmagórica que só o orvalho tropical, atraído pelo céu, consegue produzir. Em jeito de safari antropológico, acamparíamos por lá, no máximo, uns três dias, a remodelar a paisagem, a restaurar o éden primevo, a desentorpecer músculos e gatilhos, degustando caça e animais domésticos no espeto, dando tempo ao tempo e também à rapaziada da engenharia para, com os seus buldózeres cicatrizantes, ultimarem demolições e terreplanagens. Pelo meio, admiraríamos invariavelmente a eficiência e rapidez (sobretudo a rapidez) com que estes cíclopes modernos corrigiriam estragos de decénios, às vezes de séculos, e recolheríamos souvenires e fotografias para mais tarde recordar. (Existem também aqueles - coleccionadores inveterados, pesquisadores bizarros-, que cismam de recolher amostras somáticas da população -não só o anel, mas também o dedo que continha o anel; não só o brinco, mas também a orelha que segurava o brinco. Mas esses, não sendo de modo nenhum raros, também não reflectem maioritariamente a coorporação. Digamos que constituem uma certa elite sofisticada de esquartejadores vaidosos -uma espécie de jet-set da classe -, que se distingue e é venerada pelos elementos mais inexperientes da confraria. Desconhece-se, em rigor, o que os transporta a esse fragmento de carinho póstumo pelas vítimas, na forma duma orelha embalsamada ou enfrascada que guardam pró resto da vida e exibem com orgulho sardónico aos descendentes e amigos. Sabe-se apenas que não prescindem desse troféu e que o guardam, ciosamente, como a uma jóia preciosa.) Mas tudo isto, como já disse, "aqui há uns tempos atrás". E agora?
Pois agora, não obstante todo este passado glorioso, os tempos são, decididamente, outros. Melhores, eu díria. E não estou sozinho. A oferta de destinos, tanto para o turismo como para o massacre, multiplicou-se. Alastrou a zonas e climas antes tidos como inóspitos ou pouco convidativos. Os riscos, claramente, diminuíram (curiosamente, mais até para o massacre que para o turismo). As moscas, por razões que só o Diabo, seu maestro, poderá explicar, aderiram à globalização. Agora cagam em toda a parte. Qualquer continente no mapa lhes serve. Deixaram-se de esquisitices, de preciosismos. Se outrora pareciam obcecadas com climas quentes e latitudes tropicais, o que nos poupava bastante em agasalhos, agora, um raio as parta, nem as cordilheiras geladas ou as longitudes desérticas lhes escapam. (Aterramos em cada ermo!...) Dir-se-ia que um frenesim conspurcador, infeccioso, se apoderou delas, ou, pelo menos, do aparelho digestivo delas. Que passaram do tiro-a-tiro à rajada, ao lança-esterco. E nós, operadores diligentes, pajens orgulhosos do imperativo categórico, kantianos até á medula, pela primeira vez, damos connosco às aranhas por causa das moscas. Sem ter mãos a medir, nem braços que cheguem para tanta sujidade e, principalmente, tanta missão urgente. Os generais, esses, até já estão com os olhos em bico e os neurónios em sobrecarga. Berram com os coronéis, que gritam com os majores, que resmungam com os capitães, que desabafam connosco.
Mas o pior não é isso. O pior é que somos perfeccionistas, virtuosos - temos preceitos, caramba! À nossa maneira, entendemos o massacre como uma arte, bela ou mala tanto faz, mas cada massacre constitui uma peça singular, única, que assinamos no fim, que delegamos à posteridade, às gerações vindouras e que exporíamos no Louvre, ou na Tate Galery, sem qualquer complexo. É preciso tempo para a arte; inspiração, disponibilidade. Fosse o massacre um desporto e talvez a correria désse jeito. Mas não é. Só açougueiros podem afirmar o contrário, alarves, funcionários de matadouro. O galope é inimigo da minúcia, do pormenor sublime, do traço genial. Massacre é uma coisa, fast-massacre é outra nos antípodas, nas traseiras. É comparar uma oeuvre de cuisine com um hamburguer no pão. Massacra-se mais, mas não se massacra melhor. Mata-se sem talho nem feiçalho, de qualquer maneira, à toa."Mata-se", é favor. Em grande número de casos, mais do que seria aceitável, nem se mata: apenas se mutila ou traumatiza. Deixam-se pessoas a penar, entregues a fobias e fantasmas; a insónias e suores nocturnos.
E como se isto não bastasse, como se já não fosse desprestígio bastante toda esta aceleração contraproducente, desvairada, que nos empurra e avassala entre serviços mal atamancados, ainda corremos o risco de, com tanta chamada e foco a reclamar a nossa intervenção, nos confundirem -supremo vexame!- com para-médicos ou bombeiros. Uma infâmia sem nome!...E logo numa época destas, tão prometedora...
Enfim, não há bela sem senão.
Sem comentários:
Enviar um comentário