Saímos de madrugada, já é certo, mas vamos para onde?
Esta velha questão -que já a Metafísica Ocidental colocava em tons preocupados-, reveste-se da maior importância. Antes de ser uma gratificante sensação de dever cumprido, o massacre começa por ser um pequeno pontinho no mapa, numa qualquer sala de operações. "Este mapa está sujo", reflecte um general, repugnado. "Uma mosca cagou aqui! é inadmissível." Todos se debruçam e persignam. Como pôde aquilo acontecer? Onde andavam as sentinelas, do exército e da civilização? Mas efectivamente ali está ela, a cagadela ofensiva, ostensiva, demoníaca. As moscas são insectos diabólicos. Há provas arqueológicas e etimológicas disso: "Belzebu" -do Babilónio "Baal-Zebud" -, quer dizer, em rigor, o "Baal das moscas". Não é por acaso que as moscas cagam nos mapas, não é ao calhas. Obedece a um plano tão antigo, complexo e indecifrável quanto o do próprio Deus Criador. Na verdade, é um anti-plano, sinistro, abominável, insidioso. A finalidade, essa, é clara, sendo não obstante tenebrosa: querem impedir as boas pessoas de ascenderem ao céu, de serem recompensadas como merecem. Obram para lhes impedir o treino condigno na terra, o ensaio do cerimonial apoteótico e do paraíso subsequente. A Terra, como no-lo explica a Civilização e abençoa a Igreja é, de acordo ao projecto divino, um ginásio, um ginásio amplo e totalitário onde se exercitam os futuros celestiais e os futuros danados. Cada qual na antecâmara que lhes compete. Uns experimentando e adaptando-se , desde já, às delícias; os outros, infames, malvados, aos horrores. Se não treinassem na Terra como se desembaraçariam, depois, no Céu? Ou no Inferno? Mas as moscas conspiram contra esta perfeição inefável, contra este Ensaio Geral. Depositam excrementos, como quem semeia minas, obstáculos, bombas armadilhadas. Querem corromper a urbanização divina, disseminar paraísos aleatórios, clandestinos, condóminos abertos, sem projecto nem alvará da Câmara Celeste. Trabalham para o caos, é evidente. Mas, graças a Deus, existem os generais e os políticos que programam os generais. Pelo que o antídoto é simples: os generais, enojados, apontam a cagadela no mapa aos coronéis. Os coronéis compreendem, apressam-se a corroborar: "Não é um lapso dos Serviços Cartográficos, meu general. É mesmo uma cagadela!" O general, de olhar perdido no infinito, através da janela, já não diz mais nada. Nem precisa. Chamam-nos lá dentro - a nós, os operadores -, um major qualquer. E diz-nos: "Limpem aquela hedionda cagadela, depressa! É essa a vossa missão". Encolhemos os ombros, como qualquer funcionário diante da rotina. Pegamos no equipamento, camuflamos o rosto e as mãos, subimos nos helicópteros, voamos sobre campos e rios, que decalcam na perfeição as linhas e cores no mapa, chegamos de manhã cedo, como já expliquei, a melhor altura do dia... E limpamos. Limpamos muito bem limpo. Sem deixar resíduos de qualquer espécie.
Nem sempre é tão fácil como soa; há manchas mais difíceis que outras, cagadelas mais ou menos entranhadas no mapa. Requerem várias passagens de tira-nódoas e esfregona. Não sabemos exactamente o que as moscas comem, um ror de porcarias, certamente. Apenas sabemos do custo que é limpar o que elas cagam. Todavia, é essa a nossa missão: manter os mapas limpos, desimpedir rotas e azimutes. É um serviço sujo, ao princípio enauseante. Mas alguém tem que fazê-lo.
Um tipo habitua-se a tudo.
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