quarta-feira, maio 02, 2012

O Dever e as dívidas

«Pergunta-lhe se ele consegue viver sempre em défice e dívidas. »

Não é preciso a Zazie dar-se ao trabalho de perguntar. Eu respondo.
Não; não consigo viver sempre "em défice e dívidas". Por uma razão muito simples, óbvia e eloquente: porque não consigo viver sempre. Sou por natureza, herança e modéstia um ser finito. Eu e todos os humanos aos cimo deste belo planeta. Claro que isto - a finitude dos humanos - deixa logo de fora um ror de desalminhas que me dispenso de enumerar por falta de tempo da minha parte e de individuação da parte deles, mas que, não obstante, descrevo em género: caracterizam-se por viver não ao cimo do planeta, como lhes recomendou e destinou o Criador, mas dentro ou debaixo dele (e vão, grosso modo, desde aqueles que lhe parasitam os intestinos  e prosperam na respectiva substância como no melhor dos mundos, até aos que habitam sob montanhas de lixo adiado convencidos de terem reencontrado o éden das delícias).
Não obstante, se Vossência colocar esta mesmíssima questão ao meu sócio e engenheiro Ildefonso Caguinchas pode ficar certo que a resposta dele será diametralmente oposta à minha. Não só garantirá que consegue  (viver em "défice e dívidas") na maior das calmas e perfeições, como duvidará que exista alguma outra forma possível e aceitável de gastar a existência. E mais lhe comunicará, de brinde, que se Vossência assim não pensa nem procede, a unica razão para tal bizarria não decorre duma putativa expertize económichosa , mas apenas do facto - certificado e atestado (e dito muito liminar e prosaicamente)  -de ser  um grandessíssimo totó.
De qualquer forma, a pergunta está mal colocada. Melhor dizendo: falaciosamente transposta. A sua inquirição e assunto tem como objecto um país; não pode pois ser deslocada para uma simples pessoa. Pelo que a questão, posta com legitimidade, devia ser: "consegue Portugal viver sempre em défice e dívidas?"
Neste caso, a resposta mais adequada, por incrível que pareça, até seria a do Engenheiro Ildefonso Caguinchas, só que de pernas para o ar: não, Portugal não consegue viver sempre em défice  e dívida por duas lhanas e peculiares razõezinhas: 1) porque falece entretanto; 2) porque é totó. A primeira, como deve calcular e a História, caso o atormente uma súbita amnésia, estará sempre aí para lho explicar até aos detalhezinhos sórdidos, decorre da circunstância de os países, embora mais vastos e complexos que os simples seres humanos (mas não muito), também não usufruirem da eternidade garantida. Sim, do crescimento económico desarvorado e eterno, caso se apliquem as excelentes receitas dessa ciência exacta chamada economia perlim-pim-pum, prima direita da astrologia zulu, cunhada da necromancia espírita e madrasta em segundo grau do totoloto da silva, sim, isso, usufruem todos os dias, excepto domingos e feriados, mas, lá está, será talvez o único prodígio taumatúrgico de que são capazes (uma vez os astros devidamente perfilados, subentenda-se). Quanto à segunda, espero que já tenha adivinhado, resulta do acaso irritante mas inultrapassável de Portugal não ser os Estados Unidos da América. E Portugal não é os Estados Unidos da América da mesma forma que Vossência não é o Engenheiro Ildefonso Caguinchas.
Para terminar, ainda leva de bónus, da minha parte, a declaração solene de que, caso eu pudesse viver para sempre, pois para sempre viveria em défice - de sabedoria, de harmonia e de liberdade - e mergulhado em dívidas  - de gratidão (para com a generosidade Daquele que me deu a vida e a Arte junto com ela), de honra (para com os meus antepassados e a minha pátria), de lealdade e fraternidade (para com os meus raros mas, por isso mesmo, valiosos amigos) e, acima de tudo,  de devoção - para com essa dívida vitalícia que mais que todas me avassala e penhora: a beleza das mulheres. E compenetre-se Vossência que é precisamente nisto que reside a capital diferença entre um dragão e um totó: na qualidade e dignidade dos seus credores, na excelência e eternidade das suas  dívidas. Aliás, ao contrário do totó, o dragão, tal qual o homem inteiro, não cultiva nem se submete a dívidas: submete-se a deveres.
Perdoe-me se não faço acompanhar isto de gráficos e estatísticas, mas, na verdade, não há gráficos nem estatísticas para isto. Nenhuns.

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