Dos vários (chamemos-lhe assim) tabus civilizacionais - mais ainda que o incesto, a pedofilia, ou o infanticídio - há um que sobremaneira me repugna: o canibalismo. Mas, bem vistas as coisas e ainda mais os tempos, sou forçado a reconhecer que é apenas mais uma prova - uma manifestação eloquente! - de como sou um indivíduo preconceituoso, obscurantista, bota de elástico e até, a limite, faxistóide. E irrealista. Muito. Irrealista e obstinado. Todavia, decidi arrepiar caminho. Nunca é tarde para nos resgatarmos às nossas inibições, digo, erros.
Assim, de modo a compensar o mundo de todos estes meus atrasos e anacronismos, decidi lançar-me na proposta dum avanço tão natural quanto lógico. É dela que vos venho dar conta.
Como diz a Bíblia Sagrada, há um tempo para tudo. As pessoas, não sei porquê, tendem a ler o tudo como um quase-tudo, mas fazem mal: é mesmo tudo que está lá escrito. E se está lá escrito, quem somos nós para duvidarmos? Eu, por mim, deixei de alimentar dúvidas. E basta-me olhar à minha volta - ver telejornais, jornais, filmes, revistas, blogues (facebocas e twits é coisa que ainda não adquiri estômago para frequentar, mas, concluído o curso de fáquir cibernóico que venho frequentando, lá chegarei; não percam a fé) - pois, como dizia, basta-me a realidade circundante para que uma fria e arrepiante (mas isto é só enquanto eu não me habituar) certeza me invada.
Ora, isto é como tudo: há um tempo para a subida e há um tempo para a descida; há uma tempo para a paz, e há um tempo para a guerra; há um tempo para o amor, e há um tempo para o ódio; há um tempo para o nascimento e a juventude, e há um tempo para a velhice e a morte. É uma lei eterna e imutável, esta coisa do Tempo. Por isso, capacitemo-nos: houve um tempo para a civilização e agora há um tempo para o seu contrário. Houve um tempo para erigir - e que belas catedrais e sinfonias foram capazes os homens de erguer ao céu! -mas agora está na hora de ruir, de estender passadeiras rolantes de cacos, lixos e entulhos na direcção do abismo.
Nesse sentido, como outrora no outro, nós, portugueses, temos uma palavra a dizer. Bem, agora, não será palavra propriamente dita, será mais grunhido, guincho, ronco, stand-up comedy, ou ruído que o valha, mas o que quer que seja, convirá que nos represente condigna... neste caso, indignamente. Em suma, urge que não deixe vago o nosso lugar cativo no camarote dos acontecimentos.
Mas vamos à proposta concreta. E nada modesta, porque isso de modéstia é para irlandeses.
É verdade que tempos pedalado, regularmente, na retaguarda do pelotão da Descivilização. Enquanto outros povos e regiões se têm descivilizado a grande velocidade, nós, muitas vezes, e até por vergonhosos períodos, temos progredido a trouxe-mouxe, quando não ziguezagueado ou patinado, gastropedicamente, numa baba morosa e embaraçante. Ao infanticídio, por exemplo, só recentemente lá chegámos - já inúmeros outros, em fogoso galope e tumultuoso sprint, tinham cortado a meta há séculos. No Terrorismo inefável, na chacina industrializada, ainda vamos a milhas. Já toda a europa e quase toda a ásia e américa descansam no hotel, saboreando as delícias da sauna e da massagem, e ainda zanzamos nós, pela encosta abaixo, perdidos no nevoeiro e desorientados na bússula. Não admira, assim, que nos olhem com desprezo e desconsideração. Por este andar, assaz lerdo e entorpecido, ainda acabamos absorvidos pelo carro vassoura da prova, e um dia destes, quando se fizer a história da Descivilização, nem uma nota de rodapé, ínfima e esquálida que seja, nos prestará memória.
Pois chegou a hora de darmos uma violenta sapatada no pelotão! Aproveitamos o factor surpresa, e, metamorfoseando a modorra habitual num frenesim estupendo, passamos por estes descivilizados todos a jacto, que nem um foguetão infame, e encetamos uma fuga mirabolante que só não terminará em glória porque agora não é esse valor antiquado que se conquista, mas a ignóbil fama e o grunhoso sucesso. E uma pipa de massa pela vitória, olaré. Como daremos nós essa sapatada inaudita, espectacular e miraculosa? Muito simples: legalizando, melhor dizendo, restaurando o canibalismo. Atentai desde logo no primor macabro do conceito - restauração do canibalismo. Quereis expressão mais infeliz e, por isso mesmo, esplendorosamente marketil que esta?
De que forma? Ainda mais simples, lógico e moderno: vamos comer os desempregados. Já os criamos em forma de gado - como a Argentina cria bois, a austrália ovelhas ou a antártida pinguins, nós criamos desempregados, manadas e manadas deles -, falta agora processá-los consequentemente. É um monumental desperdício de carne a que a nosa economia periclitante não se pode dar. De carne, de dinheiro e de tempo. Explico sucintamente: ao contrário dum boi ou dum porco, um desempregado, quanto mais tempo é deixado na pastagem, mais emagrece. Por uma razão muito simples: o desempregado não pasta. Monetariamente inibido, deprimido, socialmente odiado, abominado pela própria família, o desempregado perde rapidamente quase todo o interesse culinário. A tenrura original cede rapidamente passo a um intragável emaranhado de nervo e osso. Pelo que, como é óbvio, quanto mais o tempo decorre nessa condição, de desemprego, pior. Mas, por isso mesmo, o potencial lucrativo do desempregado é imensamente maior que o de outros gados, quer bovinos, quer suínos, quer, até, avícolas. Porque dispensa, de todo, qualquer despesa com alimentação, crescimento, engorda e parque. Dispensa e desaconselha. O desempregado, por assim dizer, é uma carne instantânea: mal desponta, está logo pronta a ser processada e consumida. Esse, de resto, é o seu momento ideal de colheita e abate. Assim, convém criar mecanismos de recolha e transporte ágeis e bem organizados, entre os produtores e os matadouros municipais, de modo a que nenhuma da excelência e suculência potenciais se percam com demoras e burocracias inúteis. Para aqueles que, obsoletos e anquilosados na moral, ainda sintam algum escândalo com isto, convém que se compenetrem e desfastiem por via da imaculada e incontornável fundamentação técnica que a toda esta aparente (apenas aparente) carnificina (na etimologia, oficina de carne) preside e absolve: Numa economia arcaica, a finalidade dos agentes é produzir bens ou serviços necessários ou desejados pelas populações; na economia moderna, de que o novo Portugal se constitui laboratório radioso e radiante, a finalidade da economia (investimento, produção e distribuição) é produzir desempregados. Ora, é admissível que uma economia tenha por destino a mera produção de lixo e desperdício? Nem por sombras. Os desempregados não podem ser o atestado do nosso absurdo, nem o absurdo pode ser a nossa instituição. Pelo contrário, impõe-se que sejam a avenida do nosso resgate, o trampolim para a nossa salvação.
Depois... bem, depois, é todo um admirável mundo novo de possibilidades e nichos de mercado. Até porque o desempregado não é apenas imensamente mais rentável que o bovino: é imensamente e mansamente também. Um bovino ainda oferece o risco duma cornada, o desempregado nem isso. Uma semi-catalepsia tal, um torpor estuporizado de tal ordem, só encontrarão talvez paralelo nalguns passageiros de comboio por alturas do III Reich ou naqueles estúpidos pássaros dodós do tempo das navegações.
Quanto às possibilidades propriamente ditas, desde menu de atracção turística nos nossos restaurantes, hotéis e festivais gourmet, até enchidos, fumados, enlatados de exportação é toda uma cornucópia de mais-valias e lucros fabulosos ao virar da esquina. E a panacéia que não será para o défice!... O lenitivo para as contas públicas!... E a maravilhosa bomba vitamínica e anti-inflamatória para aquele Instituto usurário da Segurança Social, que, justamente, deverá gerir a exploração da coisa, como só ele sabe e a sua vocação essencial e treino o exaustivo (embora virtual, por enquanto) reclamam!... Ah, e nunca esquecendo, o sublime paraíso terreal para as grandes cadeias de distribuição, para gáudio e orgasmo intelectual dos Mirandas todos da parolóquia.
Contudo, se há coisa que eu não pretendo substituir, nem subestimar, caros leitores, é a vossa pródiga -e geralmente faminta - imaginação.
PS: Isto não será obrigatória e exclusivamente uma indústria. Embora, no essencial, seja isso, devidamente patrulhado pela ASAE, e a bem da harmonia social, também poderão ser implantados regimes cinegéticos especiais, nomeadamente, nos bairros mais castiços, ou até em explorações familiares, onde, como é timbre idiossincrático da nossa gente, poderão ser organizados festins populares, piqueniques e tasquinhas... com animados abates, regadas matanças e os chamados - e tão aclamados - petiscos.
PSS: Por acaso, só de me ocorrerem cenas pitorescas de neo-varinas pelas ruas da Mouraria, rebocando, pela trela, pequenas filas de precários recentemente arruados e apregoando: "Olha o desempregado fresco! Olha o desemoregado fresco!...", até, confesso, quase que se me humedecem os olhos. (Proibidos de pescar no mar, que alegria será assistir ao ressuscitar buliçoso dos nossos arrastões, lançando doravante as redes em terra !... E venham cá com quotas para o desempregado como vieram para a sardinha, que os nossos bravos governantes dizem-lhes das boas!).
PSS: Por acaso, só de me ocorrerem cenas pitorescas de neo-varinas pelas ruas da Mouraria, rebocando, pela trela, pequenas filas de precários recentemente arruados e apregoando: "Olha o desempregado fresco! Olha o desemoregado fresco!...", até, confesso, quase que se me humedecem os olhos. (Proibidos de pescar no mar, que alegria será assistir ao ressuscitar buliçoso dos nossos arrastões, lançando doravante as redes em terra !... E venham cá com quotas para o desempregado como vieram para a sardinha, que os nossos bravos governantes dizem-lhes das boas!).
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