quinta-feira, março 03, 2011

Da hierarquia abissal




Justificação de John Galliano, uma vez sóbrio, acerca do episódio que as televisões não se cansam de relatar:
-"Antisemita, eu? Mas não eram mongolóides?"

Em todo o caso, parece que a bizarra criatura se queixa de ter sido, em primeira instância, vítima de provocações e insultos homofóbicos. A sua resposta a esse alegado ataque é que revela um grau de estapafúrdio só eventualmente equiparável ao grau de etilização. Realmente, comunicar aos mongolóides que, no que dependesse de Hitler, não estariam ali de boa saúde, sendo verosímil, não deixa, contudo, de ser perfeitamente disparatado: no que dependesse de Hitler, ele próprio, Galliano, enquanto gay e artista decadente, também não estaria ali. Que sentido, pois, faz, à luz do sagrado actual, acusar um gay de anti-semitismo? Será que, na escala dos sacrilégios, o anti-semitismo prevalece sobre a homofobia, como, por exemplo, nos crimes vulgares, o assalto à mão armada prevalece sobre o simples furto?

Agora a sério. Penso que esta peripécia recorrente, numa incivilização que terraplenou e açougou todo e qualquer sagrado, revela que, afinal, se tenta, manhosamente, colmatar o sacrovácuo através da injecção de botok pseudo-inefável - que é como quem diz, um fundamento religioso de pacotilha erigido em dogma irrefutável e indiscutível. Esse dogma, nesta neo-democracia fundamentalista, acreditem ou não, chama-se "holocausto".
Ora, no tal holocoiso, tanto os judeus como os homossexuais desempenham a função martirológica abastecedora da hagiografia oficial (embora por uma questão de táctica talibã e capricho comerciante os arvorados em holojudeus reclamem uma exclusividade feroz, por via, presume-se, duma espécie de patent pending da invenção). Mas como sobre os delírios, por mais sulfatados e massificados que sejam, prevalece a realidade, o certo é que o genocídio deve ser entendido na sua totalidade e não na sua parcialidade. A aceitar esse reducionismo exclusivagante, não se trataria dum holo-causto, (inteira-cremação), ou seja, da chacina completa e metódica de ciganos, mongolóides, esquizofrénicos, judeus, comunistas e democratas em geral, mas apenas de um merocausto (semicausto, hemicausto, minicausto, ou o que se entendesse chamar à cremação de apenas uma parte), isto é, o massacre parcial de judeus. Ora, como é bom de ver, não é de todo admissível que uma parte reclame para si a totalidade do evento. A não ser que aceitemos que há vítimas mais vítimas que outras. Se bem que, na verdade, seja precisamente isso que, mais uma vez, toda esta anedota indicia: a tal hagiografia (embora derramando-se sobre mongolóides, atrasados mentais, judeus, ciganos, homossexuais e democratas em geral) será tudo menos democrática. Pelo contrário, parece porfiar e subverter pelo estabelecimento terrorista duma espécie de hierarquia celeste grotesca, com os judeus acima de todos os outros, em contacto íntimo com a Divindade Resplandecente e em usufruto privilegiado das cornucópias pródigas deste. E lá voltamos nós a Orwell: Todos os anjos são iguais, mais há uns anjos mais iguais que outros. Entretanto, visto tratar-se aqui duma querela flagrante entre as duas ordens superiores da pseudo-hierarquia celestial, um marxista, naquele seu jeito brejeiro típico, chamar-lhe-ia "luta de classe". Mas eu, que prefiro sobremaneira a lucidez, acho que é mais zaragata de falta dela.

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