Entendam isto como prémio de consolação aos irredutíveis leitores desta casa.
«Como em Babel, a Torre pressupõe a Escada, cada novo degrau representa o abandono do segundo. A viagem, por seu turno, é migratória e unilateral: trata-se duma ida para o céu. À partida está fora de questão o regresso, ou sequer a circulação. Nenhuma dúvida é tolerável, nem nenhuma hesitação. Cada novo degrau reflecte portanto uma conquista, um triunfo, uma aproximação ao céu, à divindade, e, isocronicamente, também um abandono, um desprezo, um afastamento do solo, tanto quanto do degrau anterior. Babel metaforiza a Evolução. Nesta é suposto que não só o salto se mascare de voo, como este se consume na ascensão. Arrebatado com cada novo lanço, o homem não sabe exactamente a que altitude encontrará a meta, nem a distância a que fica; sabe apenas que é para cima, que o tempo escasseia e a vida é breve, pelo que cada patamar que atinge, ou melhor, onde se imagina, imagina-o mais próximo do céu e cada vez mais longe da partida. Nesse delírio de se fantasiar cada vez mais próximo do que o obceca esquece completamente aquilo que vai deixando para trás. Cada degrau serve-lhe apenas como trampolim para o degrau seguinte. Uma vez usado, ultrapassado, torna-se irrelevante, descartável, vaga recordação indiferenciável. É como se só existisse consoante o pé humano o pisa e a mão humana o constrói. A mão à frente, o pé logo a seguir.
Por outro lado, o delírio instaura a sofreguidão, a ânsia, o frenesim desvairado: a cada passo, a evolução acelera, exorbita, disparata. Já não é só uma evolução, é uma revolução permanente. Cada novo patamar alcançado, reflecte já um êxtase absoluto: imagina-se o céu. Auto-proclama-se. Inflama-se. Autofunda-se. O Céu é já uma sucessão de céus, andares sobrepostos numa torre, e a escadaria virou elevador a jacto. Doravante, onde está o homem, donde firma novo salto, nesse presente sempre a ameaçar um rejuvenescimento mais acima, uma promoção, aí, é onde está o Céu. Afinal, ao contrário do que Jesus insinuava, o reino não está dentro do coração humano, está debaixo dos seus pés. E na ponta dos seus dedos. Na terminologia Blobglob, claro está, não se diz o “Céu”, mas simplesmente “o melhor dos mundos possíveis”.
De todo este processo trampolineiro –quer dizer, de usar cada momento como trampolim do seguinte-, fica o repúdio pelos trampolins entretanto tornados obsoletos pelo trampolim actual, da moda. Assim, como, na escalada, decorre um processo mais ou menos acrobata de construção duma actualidade celestial, também, na proporção e declive inversos, acontece um processo de obsolescência das etapas que vão ficando para trás e, sobremaneira, do ponto de partida. Um pouco à semelhança do fogo que, conforme alastra, vai acendendo luz e chama à sua frente e deixando, no mesmo acto, cinzas e escombros atrás de si.
Diante dum presente cada vez mais auto-suficiente, arrogante e hermético, já pouca ou nenhuma falta faz o passado. Pelo contrário, só atrapalha. O tempo agora não é de enleios nem vacilações. Mesmo que o sarilho seja de tal ordem, e o erro crónico de tal grau, que as nuvens sombrias da catástrofe iminente espreitem a toda a hora do horizonte, a haver fuga ela só pode ser em frente, a todo o vapor, alguém se há-de salvar. Mesmo que se quisesse voltar atrás já não seria possível. Já se chegou demasiadamente longe. Perderam-se os sinais do próprio rasto. Não se faz a mínima ideia por onde fica o caminho de retorno, se é que ele existe. Por outro lado, voltar agora atrás só atestaria o fracasso absoluto de toda a civilização tal qual a entendemos, ou melhor, nos auto-impingimos. Antes a morte! Antes um desastre total!, que esse reconhecimento da vaidade e do vazio de todo um esforço e trabalho milenares. Seria matar os mortos. Seria dizer que nunca viveram. Se tudo se passou como se passou, foi porque não havia alternativa. Fez-se o melhor que se podia. Nunca foi um mundo perfeito, mas foi sempre o melhor dos mundos possíveis. Especialmente agora, súmula actualizada e revigorada de todos os progressos e conquistas do passado. Mais: é precisamente o presente que justifica e redime do passado. Porque se trata duma escada ascensional, o último degrau é sempre superior ao anterior e infinitamente mais meritório que os iniciais. Ao alcançar cada novo patamar, o homem não só consegue uma proeza atlética e arquitectónica, como se liberta do patamar anterior e de toda a penúria e infâmia decorrentes até aí. É assim que, na relação do peregrino evolutivo com o seu passado, o patamar do presente, mais que uma continuação, é um colocá-lo a salvo. Não admira, portanto, que cada geração se barrique e entrincheire na sua época, no sua actualidade, na sua moda. Quanto mais radical a separação, a estanquicidade, o isolamento desta ao passado, menor o risco de recaída ou contaminação. Trata-se aqui, muito retorcidamente, dum homem a tentar vencer o seu próprio mal pela aceleração. Com arranques e guinadas bruscas, fugas de cometa, tenta que ele desequilibre, resvale e, apanhado de surpresa, traído pelo seu peso e inércia, fique para trás. O pior é que em cada novo patamar, ofegante, exasperado, descobre que ele ainda está consigo, sorridente, impante, pronto para nova corrida. E também maior, mais pesado e opressivo. Instintivamente, como o cão com a cauda a arder, espécie de cometa desvairado, o homem corre para diante, rebola-se, perfaz círculos. E se o mal não desanima, em contrapartida, o homem esboroa-se, confunde-se, dissolve-se.
A Evolução, como em Babel, é uma subida sem opção de retrocesso.
Mas se o mal não se apeia, nem resvala, a não ser na imaginação tecnofântica, há algo que resvala e se vai perdendo nos solavancos e arremetidas loucas da correria. Enquanto o mal não se torna minimamente obsoleto – canta-se o prodígio da medicina e esquece-se que está muito aquém do desenvolvimento das doenças, cada vez mais sofisticadas, sinistras e letais; glorifica-se a tecnologia de ponta e finge não reparar-se na miséria e escravidão da maior parte da manada humana; apregoa-se que a ciência libertaria e afinal só contribui para a eficácia de tiranias cada vez mais desumanas, ignóbeis e perigosas porque camufladas; a fome vai de vento em popa; a guerra é indispensável às economias; comercializam-se drogas a nível planetário e arruinam-se irremediavelmente jovens aos milhões; a violência intra-específica banaliza-se; o incitamento martelante ao desgoverno, à incontinência, ao frenesim é permanente e amplificado; a alimentação, o ar, a água são metodicamente envenenados em nome do lucro e da indústria; os políticos assemelham-se a bandos de parasitas maléficos, peritos no desgoverno, na corrupção e na subversão de todos os valores, expectativas e ideais da humanidade; os regimes, sob a pele de cordeiro das democracias, escondem as garras e as mandíbulas afiadas do despotismo ao serviço de seitas cleptocratas e adeptas furiosas do vampirismo hereditário e vitalício; enfim, eternizar-nos-iamos no inventário-, pelo contrário, certos e ancestrais bens, propriedades do cosmos e da vida, vêm-se, senão varridas da face da terra, à beira da extinção e, em cada dia que passa, ignobilmente sujeitas ao ostracismo da obsolescência.»
Por outro lado, o delírio instaura a sofreguidão, a ânsia, o frenesim desvairado: a cada passo, a evolução acelera, exorbita, disparata. Já não é só uma evolução, é uma revolução permanente. Cada novo patamar alcançado, reflecte já um êxtase absoluto: imagina-se o céu. Auto-proclama-se. Inflama-se. Autofunda-se. O Céu é já uma sucessão de céus, andares sobrepostos numa torre, e a escadaria virou elevador a jacto. Doravante, onde está o homem, donde firma novo salto, nesse presente sempre a ameaçar um rejuvenescimento mais acima, uma promoção, aí, é onde está o Céu. Afinal, ao contrário do que Jesus insinuava, o reino não está dentro do coração humano, está debaixo dos seus pés. E na ponta dos seus dedos. Na terminologia Blobglob, claro está, não se diz o “Céu”, mas simplesmente “o melhor dos mundos possíveis”.
De todo este processo trampolineiro –quer dizer, de usar cada momento como trampolim do seguinte-, fica o repúdio pelos trampolins entretanto tornados obsoletos pelo trampolim actual, da moda. Assim, como, na escalada, decorre um processo mais ou menos acrobata de construção duma actualidade celestial, também, na proporção e declive inversos, acontece um processo de obsolescência das etapas que vão ficando para trás e, sobremaneira, do ponto de partida. Um pouco à semelhança do fogo que, conforme alastra, vai acendendo luz e chama à sua frente e deixando, no mesmo acto, cinzas e escombros atrás de si.
Diante dum presente cada vez mais auto-suficiente, arrogante e hermético, já pouca ou nenhuma falta faz o passado. Pelo contrário, só atrapalha. O tempo agora não é de enleios nem vacilações. Mesmo que o sarilho seja de tal ordem, e o erro crónico de tal grau, que as nuvens sombrias da catástrofe iminente espreitem a toda a hora do horizonte, a haver fuga ela só pode ser em frente, a todo o vapor, alguém se há-de salvar. Mesmo que se quisesse voltar atrás já não seria possível. Já se chegou demasiadamente longe. Perderam-se os sinais do próprio rasto. Não se faz a mínima ideia por onde fica o caminho de retorno, se é que ele existe. Por outro lado, voltar agora atrás só atestaria o fracasso absoluto de toda a civilização tal qual a entendemos, ou melhor, nos auto-impingimos. Antes a morte! Antes um desastre total!, que esse reconhecimento da vaidade e do vazio de todo um esforço e trabalho milenares. Seria matar os mortos. Seria dizer que nunca viveram. Se tudo se passou como se passou, foi porque não havia alternativa. Fez-se o melhor que se podia. Nunca foi um mundo perfeito, mas foi sempre o melhor dos mundos possíveis. Especialmente agora, súmula actualizada e revigorada de todos os progressos e conquistas do passado. Mais: é precisamente o presente que justifica e redime do passado. Porque se trata duma escada ascensional, o último degrau é sempre superior ao anterior e infinitamente mais meritório que os iniciais. Ao alcançar cada novo patamar, o homem não só consegue uma proeza atlética e arquitectónica, como se liberta do patamar anterior e de toda a penúria e infâmia decorrentes até aí. É assim que, na relação do peregrino evolutivo com o seu passado, o patamar do presente, mais que uma continuação, é um colocá-lo a salvo. Não admira, portanto, que cada geração se barrique e entrincheire na sua época, no sua actualidade, na sua moda. Quanto mais radical a separação, a estanquicidade, o isolamento desta ao passado, menor o risco de recaída ou contaminação. Trata-se aqui, muito retorcidamente, dum homem a tentar vencer o seu próprio mal pela aceleração. Com arranques e guinadas bruscas, fugas de cometa, tenta que ele desequilibre, resvale e, apanhado de surpresa, traído pelo seu peso e inércia, fique para trás. O pior é que em cada novo patamar, ofegante, exasperado, descobre que ele ainda está consigo, sorridente, impante, pronto para nova corrida. E também maior, mais pesado e opressivo. Instintivamente, como o cão com a cauda a arder, espécie de cometa desvairado, o homem corre para diante, rebola-se, perfaz círculos. E se o mal não desanima, em contrapartida, o homem esboroa-se, confunde-se, dissolve-se.
A Evolução, como em Babel, é uma subida sem opção de retrocesso.
Mas se o mal não se apeia, nem resvala, a não ser na imaginação tecnofântica, há algo que resvala e se vai perdendo nos solavancos e arremetidas loucas da correria. Enquanto o mal não se torna minimamente obsoleto – canta-se o prodígio da medicina e esquece-se que está muito aquém do desenvolvimento das doenças, cada vez mais sofisticadas, sinistras e letais; glorifica-se a tecnologia de ponta e finge não reparar-se na miséria e escravidão da maior parte da manada humana; apregoa-se que a ciência libertaria e afinal só contribui para a eficácia de tiranias cada vez mais desumanas, ignóbeis e perigosas porque camufladas; a fome vai de vento em popa; a guerra é indispensável às economias; comercializam-se drogas a nível planetário e arruinam-se irremediavelmente jovens aos milhões; a violência intra-específica banaliza-se; o incitamento martelante ao desgoverno, à incontinência, ao frenesim é permanente e amplificado; a alimentação, o ar, a água são metodicamente envenenados em nome do lucro e da indústria; os políticos assemelham-se a bandos de parasitas maléficos, peritos no desgoverno, na corrupção e na subversão de todos os valores, expectativas e ideais da humanidade; os regimes, sob a pele de cordeiro das democracias, escondem as garras e as mandíbulas afiadas do despotismo ao serviço de seitas cleptocratas e adeptas furiosas do vampirismo hereditário e vitalício; enfim, eternizar-nos-iamos no inventário-, pelo contrário, certos e ancestrais bens, propriedades do cosmos e da vida, vêm-se, senão varridas da face da terra, à beira da extinção e, em cada dia que passa, ignobilmente sujeitas ao ostracismo da obsolescência.»
- in "O Tratado da Besta"
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