Quando se pisa a uva, em pleno lagar, não é ainda vinho aquilo que se extrai. É apenas sumo. Dum sabor um tanto ou quanto adocicado e enjoativo. Se sorvido sem mais preâmbulos, pode causar dispepsias eméticas ou mesmo, em caso de abuso flagrante, diarreias agudas. O vinho, não restam dúvidas, requer um tempo de maturação. E também recipiente adequado – madeira ou cuba que lhe refine o sabor. É claro que também existe o vinho a martelo, que não requer nenhuma dessas minúcias. Basta ter a fórmula química, juntar os ingredientes, misturar bem –homogeneizar, estabilizar - e eis pronta para comercialização uma zurrapa altamente lucrativa. Mascara-se, trafica-se, o público agradece e o mercado justifica. Quem diz o vinho, diz a literatura. Só que em vez de uvas são palavras. No resto, os processos de fabrico são semelhantes. E os resultados também. Se a zurrapa a martelo arruina a figadeira, envenena o sangue e corrói as tripas, a zurrapa literária, paga a metro, vendida a granel, trata com idêntico malefício a mioleira. É um crime contra a saúde pública? Pois é. Mas se o público gosta, se o comprador prefere... A coisa, por via de dogma mercantil, ganha contornos de decreto divino.
Ninguém se lembra de constatar que o público gosta daquilo que lhe vendem e compra aquilo que a publicidade lhe sugere ou que a emulação compulsiva com o filisteu do lado implica. Escolhe livremente dentro duma oferta pré-determinada que alguém, entretanto, fez por ele. O público, em boa verdade, faz lembrar uma vara de suínos em regime de internato rigoroso: não é propriamente apreciador de pérolas. Prefere substâncias mais aconchegantes: baldes de lavagem, de sobras e refugos amassados em farelo. Seja na forma de livro, de disco, de filme, ou até dessa frioleira que uns cognominam de blogue e outros mutilam à inglesa, a atracção fatal é sempre a mesma: o semelhante atrai o semelhante, a mixórdia encanta a turba.
De facto, não consta que haja falta de compradores para a heroína, nem para telemóveis que fritam os neurónios, já de si depauperados e semi-liquefeitos, dos utentes. Nem, tão pouco, consta que haja, por esse mundo fora, falta de compradores para toda a espécie de bodeguices, pinchavelhos e contrafacções. Basta um relance pelos tops de todas as latitutes e mercados, para que quaisquer ilusões quanto à racionalidade –ou sequer decência – dos consumidores se dissipem. Não falta também quem argumente que essas obras barbitúricas (dessa tal lixeratura-light e não só) são beneméritas pois instauram o hábito da leitura em pessoas que, doutro modo, permaneceriam imunes aos encantos e delícias da bibliofagia. É um argumento deslumbrante. Com a mesmíssima lógica contundente, poder-se-ia alvitrar que as pastilhas de ecstazy criam o saudável hábito de ingerir vitaminas ou que a frequência de discotecas constitui a iniciação básica de qualquer melómano que se preze. Parafraseando o povo: o que é que o cu tem a ver com as calças? Ou dizendo à moda dos eruditos: em que é que a lobotomia a conta-gotas favorece o pensamento?
Até o velho e sábio aforismo de Lichtenberg reclama por uma actualização. Dizia ele: «Um livro é um espelho: se um macaco nele se mira não é, evidentemente, a imagem dum apóstolo a que aparece.» Pois bem, se isso no século XVIII era, regra geral, válido, neste nosso tempo, em contrapartida, o fenómeno complicou-se, os macacos sofisticaram-se. Se outrora se remiravam nos livros, agora, com petulância inaudita, vão mais longe: escrevem-nos.
Que, por isso, em vez de chacota recebam prémios é outro sinal dos tempos e da sua perfeição. Um macaco escrever um livro não deixa de ser uma proeza considerável. Mas mais extraordinário ainda é que cada vez mais macacas também o façam. Julgo que dentro em breve até os macaquinhos... A Agustina, confessou ela, com 14 anos já sabia que ia ser uma grande escritora. Há gente assim.
Nas leis da Sobrevivência, disciplina que em tempos leccionei, uma das regras elementares da comestibilidade dos frutos é observar os macacos: se os macacos comem é porque não é venenoso para o ser humano. Na literatura é precisamente ao contrário: se os macacos devoram é porque não presta. Mas a regra mantém-se: convém observar os macacos. Nem sequer é difícil: estão por todo o lado, verdadeiramente infestantes, sobretudo de roda de tops e tabelas de vendas ou de audiências. Há livros e autores que, graças a esse providencial expediente, evito com o maior dos cuidados. Com a mesma precaução, aliás, com que contorno os dejectos largados pelos animaizinhos de trela no glauco empedrado dos passeios. Ao cidadão humano é-lhe tão útil ler os primeiros como pisar os segundos.
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