«Ainda mais importante, é ter em consideração de que existe em muita gente uma forte necessidade de formas de culto, que co-existe com a aversão simultânea pelas Igrejas. Sente-se uma falha na existência, e nisso assenta a corrente em volta dos gnósticos, dos fundadores de seitas e dos apóstolos, que com maior ou menor êxito assumiram o papel das Igrejas. Poderíamos dizer que existe sempre um certo grau de disposição para a crença, que foi satisfeita legitimamente pelas Igrejas. Mas, agora, libertada, esta força prende-se à primeira coisa que aparecer. Daí a credulidade do homem moderno no qual coabita ao mesmo tempo a descrença. Ele acredita no que está escrito nos jornais, mas não no que está escrito nas estrelas.»
- Ernst Jünger, "Tratado do Rebelde"
Na raiz latina "credo" tanto pode significar "confiar por empréstimo", "emprestar dinheiro", "emprestar", como "acreditar", "dar crédito", "confiar", "supor", "ter como certo", etc. Indo ainda mais fundo, à raiz grega "Craw", o leque aumenta: tanto pode traduzir "emprestar", "conceder", "vaticinar", "anunciar", como "ter necessidade de", "ser pobre", "pedir", "usar de", "tomar emprestado" ou "consultar um oráculo". Em "craw" entronca "crhema" - empresa, soma de dinheiro, finança, riqueza, massa (no sentido de multidão), paga, salário, etc. E ao Mercado, banca ou bolsa um grego chamaria "crhematisthérion" (crematistério).
O que disto ressalta desde logo é que existe uma ambiguidade ancestral no próprio significado das palavras. Uma ambiguidade que, no caso da crença (não foi por acaso que a escolhi) reflecte essa coabitação entre dois sentidos aparentemente díspares - o sagrado e o profano, o celestial e o rasteiro, a limite, o divino e o dinheiro. Serão as palavras monstros - quimeras onde se digladiam, em amálgama espantosa, formas e ideias contraditórias: cabras e leões, aves e répteis?
O facto é que a "crença", já enquanto mera palavra, tanto nos pode conduzir a Deus como ao dinheiro; tanto nos pode converter em devedores do Céu como da Banca; tanto pode traduzir uma pobreza nossa em espírito como em finanças. Mas, ao manifestar multiplicidade, incita-nos a uma ordenação. A uma hierarquização nos seus vários significados.
Por exemplo, eu, ao sopesar a frase "não servirás a Deus e ao dinheiro", interpreto, numa primeira instância, Deus como algo mais valioso que dinheiro; e, numa segunda, Deus como algo mais valioso do que eu e eu como algo mais valioso do que o dinheiro. Tudo junto, entendo o sentido da frase como "devo servir para algo superior a mim e não para servir aquilo que eu próprio criei para me servir". Portanto, há uma importância, um valor, que eu credito a Deus e uma importância que eu credito aos bancos. O que se tem verificado, ao longo dos séculos, no historial da nossa civilização, é que quanto maior é uma menor é a outra. Excepto, naturalmente, para aqueles Credos aberrantes em que Deus e Mamon se identificam.
Entretanto, quando eu digo Deus não é forçoso que eu signifique um Deus confinado a determinado ritual religioso; de facto, posso apenas dizer aquilo que, de certa forma, o conceito de Deus simboliza e consagra, ou seja, determinados princípios e fins - uma causa primeira e uma causa final. Quer dizer, a minha acção deve reger-se por princípios e fins; não quedar apenas refém, enclausurada e cativa dos meios. Pois, conforme estipula a matriz da nossa própria civilização, a acção humana não é um mero exercício de meios; como não é um mero exercício de fins. Nesse caso, nesse exercício desligado e cacofónico dos meios ou dos fins cair-se-á fatalmente no desequilíbrio, na desarmonia caótica. Porque, assim sendo, ou os fins justificarão os meios ou os meios determinarão os fins. Perdidos os princípios, tudo se torna, então, possível. O cosmos deixa de estar sujeito a uma necessidade –isto é, uma ordenação primordial, eterna e transcendente (e transcendente não é nenhum palavrão feio, apenas significa não estar sujeito a caprichos, acidentes e acasos do tempo) – e passa a estar ao pleno dispor da sorte e do acaso. E de quem lá impera. Desce-se, assim, do reinado do sentido, do simbólico, para a tirania do aleatório, mascarada, no melhor dos casos, duma democracia de alienados. Note-se, a esse respeito, como o nosso tempo manifesta uma hostilidade e um desprezo ostensivo pelo “primórdio” e, em contrapartida, celebra o “media” e a “finança” – decantações, respectivas, quer do “meio”, quer do “fim”.
O que disto ressalta desde logo é que existe uma ambiguidade ancestral no próprio significado das palavras. Uma ambiguidade que, no caso da crença (não foi por acaso que a escolhi) reflecte essa coabitação entre dois sentidos aparentemente díspares - o sagrado e o profano, o celestial e o rasteiro, a limite, o divino e o dinheiro. Serão as palavras monstros - quimeras onde se digladiam, em amálgama espantosa, formas e ideias contraditórias: cabras e leões, aves e répteis?
O facto é que a "crença", já enquanto mera palavra, tanto nos pode conduzir a Deus como ao dinheiro; tanto nos pode converter em devedores do Céu como da Banca; tanto pode traduzir uma pobreza nossa em espírito como em finanças. Mas, ao manifestar multiplicidade, incita-nos a uma ordenação. A uma hierarquização nos seus vários significados.
Por exemplo, eu, ao sopesar a frase "não servirás a Deus e ao dinheiro", interpreto, numa primeira instância, Deus como algo mais valioso que dinheiro; e, numa segunda, Deus como algo mais valioso do que eu e eu como algo mais valioso do que o dinheiro. Tudo junto, entendo o sentido da frase como "devo servir para algo superior a mim e não para servir aquilo que eu próprio criei para me servir". Portanto, há uma importância, um valor, que eu credito a Deus e uma importância que eu credito aos bancos. O que se tem verificado, ao longo dos séculos, no historial da nossa civilização, é que quanto maior é uma menor é a outra. Excepto, naturalmente, para aqueles Credos aberrantes em que Deus e Mamon se identificam.
Entretanto, quando eu digo Deus não é forçoso que eu signifique um Deus confinado a determinado ritual religioso; de facto, posso apenas dizer aquilo que, de certa forma, o conceito de Deus simboliza e consagra, ou seja, determinados princípios e fins - uma causa primeira e uma causa final. Quer dizer, a minha acção deve reger-se por princípios e fins; não quedar apenas refém, enclausurada e cativa dos meios. Pois, conforme estipula a matriz da nossa própria civilização, a acção humana não é um mero exercício de meios; como não é um mero exercício de fins. Nesse caso, nesse exercício desligado e cacofónico dos meios ou dos fins cair-se-á fatalmente no desequilíbrio, na desarmonia caótica. Porque, assim sendo, ou os fins justificarão os meios ou os meios determinarão os fins. Perdidos os princípios, tudo se torna, então, possível. O cosmos deixa de estar sujeito a uma necessidade –isto é, uma ordenação primordial, eterna e transcendente (e transcendente não é nenhum palavrão feio, apenas significa não estar sujeito a caprichos, acidentes e acasos do tempo) – e passa a estar ao pleno dispor da sorte e do acaso. E de quem lá impera. Desce-se, assim, do reinado do sentido, do simbólico, para a tirania do aleatório, mascarada, no melhor dos casos, duma democracia de alienados. Note-se, a esse respeito, como o nosso tempo manifesta uma hostilidade e um desprezo ostensivo pelo “primórdio” e, em contrapartida, celebra o “media” e a “finança” – decantações, respectivas, quer do “meio”, quer do “fim”.
Por outro lado, esta ordenação hierárquica das coisas fundada na criação (e entenda-se aqui “criação” não no seu significado apenas religioso, mas também artístico, não sòmente demiúrgico mas também poético – ou seja, não apenas bíblico, mas sobretudo helénico) é deveras interessante e terrível. Senão, reparemos: se aceitarmos a sua lógica teremos qualquer coisa como "o criado ou criatura deve servir o criador. Assim, devemos servir a Deus, tal qual o dinheiro nos deve servir a nós." Em contrapartida, se nos rebelarmos contra essa ordem, se entendermos que (por exemplo, porque não somos criados, porque somos meras moléculas sem qualquer vínculo ao sagrado) não devemos servir a Deus, pode, à primeira vista, parecer muito libertário, catita e altamente moderno, mas depois tem um reverso sinistro que nos atira, de escantilhão, para abaixo dos pré-históricos canibais: é que, na mesma medida, o dinheiro e tudo aquilo que nós criámos deixa de estar na obrigação de nos servir a nós. Tornamo-nos então, nós próprios, servos dos nossos criados, criados dos nossos produtos, prole e plasma dum qualquer Estado burocrático. Preciso de vos apontar a realidade actual à vossa volta? Porque nos rebelámos contra o superior, tornámo-nos escravos do inferior; porque enterrámos as asas do espírito, rastejamos agora no pântano da matéria; porque desertámos do princípio, estamos agora confinados à finança. Partimos e pulverizámos em míseros caquinhos todo o imenso templo da Crença em Deus, doravante nanificada em milhares de minicrenças: crença na casa, crença no carro, crença no sucesso, crença no progesso, crença na ciência, crença no jornal, crença na televisão, crença no pastor, crença no doutor, crença na turba, crença no número, crença no trabalho, crença no umbigo, crença no dinheiro - somos agora miriápodes ouriçados não já em patas mas em crenças, com as quais amarinhamos por tudo, empeçonhando a esmo, e tudo isso embrulhado no tal saco da super-crença na Finança Toda Poderosa, gestora do Céu e do Inferno na Terra. Em boa verdade, à crença deixámos de tê-la para passar a sê-la. De sujeito degradámo-nos a objectos; de protagonistas, passámos a acessórios; de portadores, a transportes; de proprietários, a possessos. O produto tornou-se mais valioso que o produtor. Descartado o Sagrado, a natureza tornou-se descartável para o homem e o homem, por sua vez, tornou-se descartável para a sua própria máquina industrial tecno-eficiente. O conjunto evolutivo lembra, cada vez mais, um foguetão cósmico que vai consumindo e largando andares à medida que se afasta e embrenha direito a sabe-se lá onde.
Certo é que quanto mais aumenta a nossa descrença no Sagrado, quanto mais ao descrédito o votamos, ou seja, quanto menos importância lhe damos, mais aumenta a importância que damos a bugigangas e próteses existenciais que fabricamos, e, inerentemente, mais se agiganta a crença que para elas transferimos. No fundo, tanto quanto uma perversão na hierarquia de valores, é uma inversão que se instaura e, gradualmente, nos vai absorvendo: o novo sobrepõe-se ao original, o produto ao produtor, o medíocre ao sublime. De espaço de cultura, o mundo converte-se assim em mero palco da profanação. Desligado do cosmos, oscila, perigosa e maquinalmente, entre a incubadora artificial e o matadouro industrial.
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