«Pai, a sensata razão é uma dádiva dos deuses aos homens e a maior riqueza que estes podem ter.»
- Sófocles, "Antígona"
Ateu é uma palavra intrínseca e originariamente grega, constituída pelo prefixo de negação A e pela raiz Theos (deuses ou Deus). Actualmente, no português, "ateu" significa "aquele que nega a existência de Deus", "incrédulo", "ímpio". Mas na origem, a-theos tinha um outro significado mais eloquente: "abandonado de deuses ". Tanto quanto o ímpio, o ateu era o abandonado pelo divino.
A mitologia hebraica diz-nos que Ihavé criou Adão, o primeiro homem, à sua imagem e semelhança. O Génesis conta-nos como o Divino enformou o humano - a partir do barro. Em contrapartida, os gregos são, por um lado, bastante menos narcisistas e, por outro, bastante mais prudentes. Entendem que o antropos, formado no cosmos, foi transformado pelos deuses. De que forma? Recebendo destes a razão prudente ou sensata . Na citação em epígrafe, o conceder da dáviva traduz o outorgar duma "segunda natureza" (fusiwsis). A relação do humano ao divino reflecte, pois, ao tempo de Sófocles, uma benfeitoria, mais que uma criação. O vínculo que daí resulta não é do criado ao criador, mas do agraciado ao benfeitor. Daqui derivará, séculos adiante, qualquer coisa como a "graça de Deus", mas não nos dispersemos.
Em qualquer dos casos - quer o Divino opere a partir da matéria inerte (insuflando-lhe forma e vida), quer metamorfoseie a partir do animal existente (concedendo-lhe inteligência) -, há um vínculo de gratidão, um dever (ficar em dívida) que se instaura; uma noção de hierarquia, de pertença a uma ordem, de fidelidade a um princípio sagrado, fundamento de vida, contentamento e razão.
Ora bem, o ateu é aquele que se desvincula desta hierarquia ancestral. À proveniência contrapõe a conveniência: não é mais o que provém, mas o que lhe convém. Ele e o mundo. Não se perspectiva, pois, a partir dum passado, duma linhagem, que se projecta, através dum presente num futuro: pelo contrário, submete todo a passado e toda a possibilidade futura à sua visão obsessiva do presente. Essa, basicamente, é a sua impiedade - a impietas latina -, que se traduzia, como se traduz, pela " falta de cumprimento dos deveres para com os pais, a pátria ou os deuses". Ninguém pense que a mania caíu do céu aos trambolhões ou brotou de geração espontânea.
De facto, o ateu entende que nada deve aos pais, à pátria ou ao divino, porque tudo adquire e engendra através da ciência e da razão. Acredita cegamente que, através dessa formidável panóplia, pode agora corrigir o passado, normalizar o presente e determinar o futuro. O resultado mais eloquente dessa psicoculinária pudemos constatá-lo com o stalinismo. A mesma dinâmica mental preside à fermentação desossada e fétida da sequela actual.
A certa altura, no fim da Antígona, Creonte clama, em desespero: "Ah, razão que desrazoa!... (Iw frenwn dysfrónon)"
Ora, o ateísmo contemporâneo é precisamente um arrazoado - uma razão feita mero frenesim. Ou seja, mero exercício desligado e autofágico da "frhen" - a "frhen" que significava no grego original, o pensamento, a alma, a vontade; e donde a "fronesis" - prudência, sensatez, juízo, inteligência de uma coisa, etc. Esta "frhenon" é, na citação em epígrafe, a tal concessão divina e suprema riqueza do homem. E esta "frhenon" que "disfronon", esta "razão que desrazoa" (esta imprudência insensata que arrasta ao desastre) é aquilo de que Creonte se lamenta. Exactamente a mesma a que eu agora chamo de "razão frenética". Em rigor, uma espécie de parafrenia infecto-contagiosa.
Por outro lado, acresce um detalhe que cava toda uma diferença imensamente relevante: é que a antiguidade situava esta "prudente razão" no coração, enquanto a ciência moderna a confina ao cérebro. Quer dizer, aquilo que o divino plantou no coração do homem, o cientóide apaga, clona e fecha na mioleira do tecnopiteco avançado. Esta "razão frenética", podemos então dizê-lo, é uma "razão fora do sítio - uma razão sem coração; um simples frenesim cerebral. Não admira a sua frieza réptil e, ainda menos, o alcance impiedoso dos seus maníacos.
O problema é que estes energúmenos que descrevo não se restringem apenas às várias e mais ou menos estrídulas seitas de convulsionários ateístas da paróquia. Não, o abismal é que as próprias e diversas religiões estão cada vez mais infestadas... de ateus.
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