«Voltando à Grande Guerra, são muito poucos os sinais de que o povo americano, perante um adversário de igual poder e com as mãos livres, pudesse dar boa conta de si próprio. O papel americano nesse grande conflito ficou marcado pela poltronaria de forma quase tão conspícua como pela velhacaria. Façamos então uma breve análise do comportamento da nação. Durante os primeiros meses, a nação assistiu ao conflito de forma indolente e basbaque, como boi a olhar para palácio. De seguida, vislumbrando oportunidade para lucrar, dedicou-se com súbita alacridade ao sinistro ofício de Kriegslieferant*. Estando um dos beligerantes impedido de comprar, pelas vicissitudes da guerra, a nação empenhou todas as suas energias, durante dois anos, no abastecimento do outro, desenvolvendo em simultâneo todos os esforços para abrigar o seu cliente sob o manto da neutralidade, o que lhe permitia gozar todos os privilégios desse estatuto enquanto se aplicava diligentemente na promoção da guerra. No plano oficial, esta neutralidade constituiu uma fraude desde o início, como pode ser comprovado pelas declarações do Sr. Tumulty. Para grande parte da população, esta mentira ficou cada vez mais clara à medida que se acumulavam as dívidas do cliente beligerante, tornando-se cada vez mais evidente que essas dívidas - facto voluntariamente reconhecido pelos seus partidários - nunca seriam saldadas em caso de derrota. Por fim, a ajuda clandestina transformou-se em ajuda expressa. E sob que heróicas condições! Resumindo, uma nação de 65 milhões de habitantes, sem verdadeiros aliados, que chegara ao fim de dois anos e meio de uma luta homérica inflingindo uma derrota total a um país inimigo de 135 milhões de habitantes e a dois países mais pequenos totalizando mais de 10 milhões de habitantes, confrontou-se depois com uma aliança de, pelo menos, 140 milhões. Foi sobre este adversário esgotado pela sangria da guerra que se lançou uma república de 100 milhões de homens livres, fixando assim as hipóteses em quatro para um. E ao fim de mais uma ano e meio de conflito, a nação emergiu triunfante: honrosa vitória, sem dúvida!
Não será necessário recordar as impressionantes e inauditas torpezas que acompanharam este gloriosos empreendimento, desde o colossal desperdício de dinheiros públicos, a bárbara perseguição de todos os que se opuseram à guerra e a criticaram, a forma como a força de trabalho foi subornada, a diabolização insana do inimigo, a fabricação de notícias falsas, a vil pilhagem a que se sujeitaram os civis da nacionalidade do inimigo, a ininterrupta caça aos espiões, o lançamento de títulos de dívida pública através de um processo de chantagem, a manipulação da Cruz vermelha para fins partidários, até à renúncia a qualquer espécie de dignidade, decência e respeito próprio. Estes factos devem ser lembrados com vergonha por todos os americanos civilizados e, para que não sejam esquecidos pelas gerações vindouras, estou a trabalhar, com a ajuda de vários colaboradores, num registo exaustivo dos mesmos em vinte volumes in-fólio. Por agora, interessa-me reter dois factos essenciais que não devem ser negligenciados: o primeiro é que a guerra foi "vendida" ao povo americano, segundo a expressão consagrada, apelando não à sua coragem, mas antes à sua cobardia; resumindo, partindo do pressuposto que os americanos não eram nem belicosos nem, muito menos, bravos e lutadores, mas simplesmente tíbios e medrosos. O primeiro argumento dos que quiseram vender a guerra aos americanos assentava na premissa de que os alemães, empenhados ainda em combates devastadores am ambas as frentes, se preparavam para invadir os Estados Unidos, queimar tudo à sua passagem, matar todos os homens e levar todas as mulheres; a vitória alemã teria ainda como consequência represálias terríveis pela violação da neutralidade por parte dos Estados Unidos. O segundo argumento tinha por sustentação a ideia de que a entrada dos Estados Unidos a guerra poria fim quase instantâneo a esta, pois os alemães seriam de tal modo suplantados, em homens e armamento, que não teriam nem possibilidade de se defenderem eficazmente nem, sobretudo, de inflingirem qualquer dano grave ao seu novo inimigo. Nenhum destes argumentos, sejamos claros, tinha por pressuposto qualquer fé na destreza guerreira e na coragem do povo americano, enraizando-se antes na teoria confessa de que a única maneira de convencer as massas a lutar é assustá-las de morte e depois mostrar-lhes um meio de combater sem grandes riscos: cravar um punhal nas costas de um adversário impotente, tudo isto reforçado e suavizado ao mesmo tempo pela sugestão de que tão nobre tarefa, para além de não acarretar riscos, seria ainda extremamente lucrativa ao converter cobranças duvidosas em pagamentos certos e ao eliminar para sempre um diligente e temível concorrente comercial, sobretudo na América Latina.»
- H.L. Mencken, "On Being an American in Prejudices" (trad. port. da Antígona)
Não será necessário recordar as impressionantes e inauditas torpezas que acompanharam este gloriosos empreendimento, desde o colossal desperdício de dinheiros públicos, a bárbara perseguição de todos os que se opuseram à guerra e a criticaram, a forma como a força de trabalho foi subornada, a diabolização insana do inimigo, a fabricação de notícias falsas, a vil pilhagem a que se sujeitaram os civis da nacionalidade do inimigo, a ininterrupta caça aos espiões, o lançamento de títulos de dívida pública através de um processo de chantagem, a manipulação da Cruz vermelha para fins partidários, até à renúncia a qualquer espécie de dignidade, decência e respeito próprio. Estes factos devem ser lembrados com vergonha por todos os americanos civilizados e, para que não sejam esquecidos pelas gerações vindouras, estou a trabalhar, com a ajuda de vários colaboradores, num registo exaustivo dos mesmos em vinte volumes in-fólio. Por agora, interessa-me reter dois factos essenciais que não devem ser negligenciados: o primeiro é que a guerra foi "vendida" ao povo americano, segundo a expressão consagrada, apelando não à sua coragem, mas antes à sua cobardia; resumindo, partindo do pressuposto que os americanos não eram nem belicosos nem, muito menos, bravos e lutadores, mas simplesmente tíbios e medrosos. O primeiro argumento dos que quiseram vender a guerra aos americanos assentava na premissa de que os alemães, empenhados ainda em combates devastadores am ambas as frentes, se preparavam para invadir os Estados Unidos, queimar tudo à sua passagem, matar todos os homens e levar todas as mulheres; a vitória alemã teria ainda como consequência represálias terríveis pela violação da neutralidade por parte dos Estados Unidos. O segundo argumento tinha por sustentação a ideia de que a entrada dos Estados Unidos a guerra poria fim quase instantâneo a esta, pois os alemães seriam de tal modo suplantados, em homens e armamento, que não teriam nem possibilidade de se defenderem eficazmente nem, sobretudo, de inflingirem qualquer dano grave ao seu novo inimigo. Nenhum destes argumentos, sejamos claros, tinha por pressuposto qualquer fé na destreza guerreira e na coragem do povo americano, enraizando-se antes na teoria confessa de que a única maneira de convencer as massas a lutar é assustá-las de morte e depois mostrar-lhes um meio de combater sem grandes riscos: cravar um punhal nas costas de um adversário impotente, tudo isto reforçado e suavizado ao mesmo tempo pela sugestão de que tão nobre tarefa, para além de não acarretar riscos, seria ainda extremamente lucrativa ao converter cobranças duvidosas em pagamentos certos e ao eliminar para sempre um diligente e temível concorrente comercial, sobretudo na América Latina.»
- H.L. Mencken, "On Being an American in Prejudices" (trad. port. da Antígona)
(*- Fornecedor de material de guerra)
Qualquer semelhança com a actualidade é pura coincidência. E não adianta alertar as gerações vindouras, ó Mencken. A amnésia foi instituída. E a repetição exaustiva tornou-se a única forma autorizada de correcção. Especialmente, em se tratando dos grandes erros - aqueles particularmente sórdidos e sangrentos.
4 comentários:
"Não será necessário recordar as impressionantes e inauditas torpezas que acompanharam este gloriosos empreendimento, desde o colossal desperdício de dinheiros públicos, a bárbara perseguição de todos os que se opuseram à guerra e a criticaram, a forma como a força de trabalho foi subornada, a diabolização insana do inimigo, a fabricação de notícias falsas, a vil pilhagem a que se sujeitaram os civis da nacionalidade do inimigo, a ininterrupta caça aos espiões, o lançamento de títulos de dívida pública através de um processo de chantagem, a manipulação da Cruz vermelha para fins partidários, até à renúncia a qualquer espécie de dignidade, decência e respeito próprio."
E foi assim na II Guerra, na Coréia, no Vietnã, no Golfo, no Afeganistão, no Iraque e será assim no Irã, na Coréia do Norte e o que vier pela frente. Os EUA descobriram a muito tempo como é lucrativa a indústria da guerra.
Dragão lança fogo ácido que provoca...
http://com-menta.blogspot.com/2007/02/propsito-de.html
Já agora, aproveito a caixa de comentários para informar que não tenho postado porque a merda do Blogger não me deixa entrar no blogue. No velho. Querem forçar-me a aderir ao novo. Ora, eu não gosto que me forcem, embirro solenemente. Pior ainda em se tratando de adesão compulsiva a modernices e avanços tecnocoisos. Para que conste.
PS: é claro que não se perde grande coisa, mas enfim, as coisas são como são.
Caro Dragão, fui obrigado a criar um blog para poder postar comentários.
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