A Ítaca que esperava Ulisses era uma Ítaca que envelhecia e morria, definhando. Uma ilha sujeita a um tempo hostil e mundano; uma mulher prisioneira dum tear, duma teia ambígua, que todos os dias se faz e, todavia, permanece inacabada. O regresso de Ulisses é também a renovação. O tempo é vencido, o tear fica completo, a mulher liberta-se. Reencontra-se a mesmidade. Tudo se revê no ponto de partida. Encerra-se o círculo. Reanima-se o Todo pela reunificação das partes. Ulisses é, sem dúvida, um princípio não só unificador como benéfico, e benéfico porque unificador: Transporta consigo o Final feliz, a salvação. Terminada a sua odisseia -na concretização do círculo - fica tacitamente instaurada a Eternidade. Ulisses partirá e voltará sempre; errará para atingir necessariamente o Final feliz. E em todas essas infinitas vezes iguais a uma só, a ordem natural/circular das coisas triunfará sempre.
Mas o próprio desencadear do círculo revela, intrinsecamente, uma ordem outra que não essa: uma Ordem Superior, ordem-comando, que se revela e patenteia, quase diríamos, pela negativa. Isto é, o círculo realiza uma ordem, é uma ordem, mas subentende outra ordem acima, necessária, inexorável, determinante. Não é, com efeito, do humano entendimento perceber porque é que Ulisses tem que abandonar Ítaca para ir combater para Tróia e, consequentemente, errar e padecer por paragens longínquas, entre monstros e sorvedouros. Ele próprio não quer ir, finge-se louco quando o convocam. É perspicaz. Pressente a armadilha e nós, num plano imaginário, torcemos com ele para que não vá. Sabemos a história, como provavelmente ele a adivinha. No entanto, parte, tem que ir - porque senão não haveria história nem, tão pouco, Final feliz. Por outras palavras: Não haveria Vida. Ora, Ulisses é a ordem da vida e revela, por outro lado, na realização do círculo, a outra ordem que lhe superintende.
Do mesmo modo, também poderíamos dizer que não é do humano entendimento perceber porque é que Jesus Cristo tem que descer à Terra para ser crucificado. Num sentido, revela também ele a ordem superior: vem porque Deus Pai o manda; mas noutro ele é o Verbo feito carne, o próprio Deus que tem que descer ao mundo, à dor -enfim, que tem que lançar-se na odisseia para salvar os filhos. Tal qual Ulisses, de resto. Fica-nos, contudo, a curiosidade e a dúvida de saber se, como este, não teria também Ele preferido não ter que o fazer.
Não obstante, em ambos é o Final feliz que se concretiza: Ulisses volta a Ítaca: Cristo retorna ao Céu. Das duas odisseias se instaura a eternidade, por acordo íntimo e unânime de todos os "leitores" (é que, tal qual o "helenismo" consiste na "leitura" da Odisseia, a palavra de Ulisses, também o Cristianismo se sustenta na "palavra de Jesus"). E, por mais ateus que aparentemente nos proclamemos, como suportaríamos a vida se não nos soubéssemos eternos?
Foi confiada nessas palavras, de Ulisses e Jesus, num tempo em que a palavra significava e fazia mundo, que partiu um dia a nossa civilização. E é por força delas e daquilo que representam, que ainda hoje - por entre monstros e sorvedouros, abismos e neblinas, amnésias e desvarios - acreditamos que, algures, no fechar do círculo, nos aguarda o Final feliz. Ítaca. É para lá que vamos. Ficou-nos gravado no fundo do coração. Nesse dia já longínquo em que partimos.
PS: Em grego, "hityw" (raíz de Ítaca) significa: "ir", "lançar-se", "desejar com ânsia".
3 comentários:
dizes"acreditamos que, algures, no fechar do círculo, nos aguarda o Final feliz. Ítaca. É para lá que vamos."
não sei se isso é o mais importante na tal necessidade de infinito. O final, como dizia o David Lynch pode ser a menina do radiador, ou o sorriso/quarck do gato da Alice mas é secundário. O que mais me agrada é esse sorriso antes da partida ";O)
É só pra vos dizer uma coisa, a talhe de Dragão: se me querem ver a vomitar é falarem-me no Bertrand Russel ou, pior ainda, no Sartre!...Irra, isso dá-me mesmo volta à figadeira.
Outra coisa, menina Zazie: chamar ateu ao Nietzshe é controverso. Não é imbecil, longe disso, como já ouvi pr'aí figurões apelidarem-no do "grande filósofo nihilista", (Vão ao "comprometido Espectador" e leiam lá...) mas, repito, é controverso.
Até julgo que dava uma boa discussão. Se pensarmos no "deus" de Aristóteles ( e não no Iahvé hebraico), então, temos muito que discutir. Pensem no círculo, pensem no Eterno retorno...pensam, enfim, na Odisseia.
ora a mim também me provoca o mesmo efeito o Sartre.O Russel conheço mal mas à partida gosto sempre de tudo o que entra lógica e matemática. Impõe respeito.É isso e a hieroglífica e caligrafia chinoca.
Quanto ao Nietzsche pois dava, e esse eterno retorno é tão bonito.
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