quinta-feira, junho 17, 2004

UM MUNDO AMORFO

Às vezes, apetece-me disparar-vos assim, à queima roupa, o seguinte:
As dificuldades, os ambientes hostis moldam o carácter; as facilidades, as redomas mimosas dissolvem-no. Tenho-o constatado ao longo da vida. Não sou o único. Parece que também se constata ao longo da História. É a distância que vai do espartano ao hedonista.
É porque os homens - e com eles os povos- perdem o carácter, que a massificação se instala, que a mercearia usurpa o Céu e a pocilga o cosmos. É porque os homens se deixam levar ao pasto como manadas, que irrompem, a qualquer hora, ilusionistas de cajado armados em pastores. E não têm sido poucos os charlatães! Ultimamente, todavia, já nem facínoras desses são necessários: o chiqueiro automatiza-se a olhos vistos e passos largos. É uma exploração moderna, robotizada. O processo tem-se vindo a aprimorar. Já nem para o pasto se mexem: contentam-se com a palha, os antibióticos e as hormonas. Criam espíritos, reproduzem carácteres, como quem cria galinhas ou multiplica suínos: para uma engorda fácil e um abate rápido.
E tudo isto em nome duma anestesia, duma suavização existencial ao domicílio, duma eutanásia a longo prazo, generalizada.
É todo um mundo de anõezinhos hiperdependentes, junkies do supérfluo e da pequena mordomia, cada vez mais viciados em toda a espécie de acessórios e próteses, que enchem a boca de proclamações e fanfarronadas do estilo: "somos livres, somos cada vez mais livres! nem se compara com aquelas épocas tenebrosas do passado." São livres, claro está, desde que tenham emprego. Caso contrário, ei-los que bradam, gemebundos, merdificados: "Somos uns desgraçados!"
Para aceitar um mundo destes, para se aninhar nele à boa maneira leibnitziana, como se fosse o melhor dos mundos possíveis, para não aspirar a mais que esta gamela dourada, não é a falta de inteligência que é essencial: é a ausência de carácter, de dignidade, da coluna vertical que distingue, enfim, o homem dos animais horizontais. É imprescindível, em suma, perder a capacidade de olhar o horizonte ou encarar os céus.
Em nome do bem-estar, vendemos o nosso ser e, nada sendo digno de se ver, deixamos de estar, ficamos à deriva em lado nenhum, nem bons, nem maus: matéria neutra, plasma informe, aberração desarvorada pelos limbos. Reduzidos a ferramenta que vale enquanto a usam; plasticina sempre dúctil e disponível; escravos cegos por conta própria.
Esta massa amorfa e acéfala, agregado esponjoso e destruidor, cada vez mais obscuro e irracional, que habita os subterrâneos caóticos e ocupa os pesadelos e as visões dos poetas - esta abominação sem nome - contemplem-se: somos nós! Habitamos ruínas lúgubres, onde chacinámos horripilantemente deuses e antepassados, mundos e heróis, artes e sonhos. Memórias que reduzimos a cacos e entulho heteróclito - que assombramos e polimos com a nossa baba negra e opiniosa, a nossa verborreia monocórdica e papagueante, empastelados numa bestialidade primordial para onde vamos regredindo. Foi isso, suspeito bem, que Lovecraft descobriu, sob o imaculado manto branco da Antártida, diante das "montanhas da loucura":
«Estávamos no mesmo túnel em que deslizava aquela coluna de pesadelo, elástica, fétida, irisada, que avançava a uma velocidade infernal envolta em rolos de névoa, trazidos das profundezas do abismo negro. Era uma coisa terrível, indescritível, maior do que um comboio, um amontoado informe de bolhas protoplasmáticas, luminosas, com miríades de olhos que ora apareciam ora desapareciam, formando pústulas de luz esverdeada na parte que avançava direita a nós, esmagando os pinguins apavorados, deslizando no solo varrido que ele e outros como ele mantinham diabolicamente limpo e reluzente.»
(- H.P.Lovecraft, "Nas Montanhas da Loucura")


Fazei o caminho com ele. Ide visitar-vos. Lá detrás do verniz das aparências, por baixo do palco da feira das vaidades. Pura matéria em acção. Despida de qualquer forma. Vazia de todo o espírito.

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