quarta-feira, junho 09, 2004
O AVESTRUZ
Para culminar este dia inteiramente dedicado às literaturas, vamos terminar com um autor que dedico especialmente aos meus comentadores residentes. Adivinhem quem é. E se o encontrarem na Feira do Livro, avisem-me que eu largo tudo e vou lá a correr. Pago o dinheiro que for preciso. Atenção pois...
(Um pequeno resumo do enredo prévio: "Um digno chefe de família, nesse Natal, decidiu fazer uma surpresa à família: em vez do tradicional peru, levou para casa um avestruz. Vivo. À maneira antiga...")
(Não, Zazie, não é o Kafka!...)
«(...) Chegava o bacalhau e não chegava o consenso. De pé na cadeira, o avô arengava os seus ideais, ameaçando com greve de fome caso as seculares reivindicações não fossem atendidas, quando um restolhar na sala os alertou. Foram ver. Era o avestruz, debicando o candelabro após ter devastado a árvore de Natal.
Novas recriminações: que se fosse peru não devastava a árvore nem mutilava o candelabro, carpia a mulher. Era o que dava o desrespeito pelas tradições, e outras tragédias viriam, agoirava a sogra. Os restantes atarefavam-se de volta do presépio, á procura do menino Jesus que desaparecera, comentando o padrinho que talvez o divino bebé se tivesse farto do mau hálito da vaca e da burra, enquanto as primas suspeitavam do rei mago preto, o cunhado olhava de esguelha dois pastores, e a sogra urrava mais que todos, acusando o avestruz de antropofagia sacra e de canibalismo hediondo na pessoa do símbolo do Natal!
Fingiu que não ouvia e foi trancá-lo na marquise. Ao avestruz, claro; já que à sogra não podia: era Natal.
As buscas, entretanto, não davam em nada. Por ingestão, fuga, rapto ou sabe-se lá que mais -o tio Honoriobardo não punha mesmo de parte a hipótese duma qualquer rede de pedofilia alienígena-, o facto é que o menino Jesus levara sumiço. Ora, isso constituía um sério entrave à normal prossecução dos festejos da quadra. Havia pois que substitui-lo. Não é possível celebrar um aniversário sem o aniversariante.
-"Ó mãe, pomos o Toy chorão!" - propôs, excitada, uma das gémeas.
-"Não, pomos é antes o Action-baby!..." - contrapôs o primo Zézinho.
-"O Bebé-barbie, o Bebé-barbie!..." - pomoviam os restantes.
É claro que os adultos não demoraram a tomar partido. Dum lado, as primas e o cunhado, embevecidos com o Toy Chorão, a pilhas, que berrava desalmadamente e mijava fraldas a eito; do outro, o padrinho e o avô, convertidos aos dotes viris do Action-Baby, fruto dum caso amoroso entre o Action-man e a Wonder-Woman, também conhecido por Bebé-Bond, ou Bebé-rambo, equipado com múltiplos estojos de combate e aventura; e, por fim, num terceiro baluarte, a mulher, a irmã e a madrinha, fanatizadas no filho da Barbie com o Ken, nas suas múltiplas toiletes e cenários.
-" Tem que ser o Bebé-Rambo, gaita! E armado com a metrelhadora G-3 e o colete anti-bala, para se defender como deve ser -quando não ainda o levam para o crucificarem outra vez!" - Clamava, não sem uma certa lógica, o avô.
-"Pois!...- Apoiava, entusiasmado, o padrinho. - E com o lança-misséis portátil, à cabeceira, não vá o diabo tecê-las!"
A ala feminina, partidária juramentada do Bebé-barbie, persignava-se e retaliava pela voz da sogra:
-"Uns bons diabos sois vós, seus sandeus! Se isso é presépio que se faça!..."
-"Valha-nos Deus! - Secundou a filha da sogra e, por tal sina, mulher dele. - Então Jesus, esse anjinho que simboliza a paz no mundo, vai estar assim nas palhinhas como se estivesse numa trincheira, armado para o massacre e fardado para a matança?!...Perdoai-lhes senhor, que não sabem o que dizem!..."
-"Irra, mas que beatas imbecis! - Ribombou o avô. -Mas nas palhinhas estava ele deitado, que nem um anjinho, e vejam o que lhe aconteceu: levaram-no para a cruz, foi o que foi! Levaram-no para o pregarem que nem uma tabuleta, chiça! Mentira?...Vá, digam!..."
-"Mas, ó avô...-Tentou conciliar o cunhado e, em simultâneo, fazer campanha pelo seu preferido. - Não acha que pôr um menino Jesus de fralda camuflada e metrelhadora em riste é um pouco excessivo?...Isto é um presépio, não é a Guiné ou o Vietname!...Olhe que ternura que é o Toy Chorão, parece mesmo um menino Jesus!..."
Porém, nesse momento, cumprindo um programa regular e pré-estabelecido, o glorificado boneco cuspiu a chucha e desatou num berreiro assanhado e controverso (as primas iniciaram de pronto um aceso debate, sustentando uma que era fome, a outra que eram gases), bem como num mictório abundante, que não poupou sobremaneira o melífluo apologeta e marido da irmã. Romperam, o avô e o padrinho, em gargalhadas tonitruantes, no que a sogra aproveitou para manobrar de esguelha e atacar de flanco:
-"Calai-vos e às vossas bandalheiras, gente blasfema, antes que um raio desça dos céus e vos refunda a todos! Tirai-vos, que já aqui vai o nosso menino, com o vestidinho de crisma e o fatinho de catequese!..."
-"Sim, -completou a filha - e no carrinho de ir ao supermercado!..."
Era verdade: o Bebé-barbie resplandecia, prontinho nos mais dignos e precoces fatos de ver a Deus, ao volante da viatura bendita.
-"Ó mãe, e não esqueças o telemóvel do bebé, com GPS e Bip sinalizador, anti-sequestro!..." Alertou uma das netas (da sogra).
-"E olha a consola on-line, com turbo scan 3D!..." - Acudiu uma outra, um ano mais nova.
Mas o avô, arreigado aos seus caprichos, desenfreado na caturrice, é que não estava pelos ajustes. Apercebendo-se da ameaça, do abrolhar da procissão, foi lesto em deslizar das gargalhadas para os urros. Munindo-se de tons melodramáticos e parábolas de empréstimo, atalhou de supetão:
-"Mas ó súcia ígnara e sem fé, até quando terei que vos aturar?! Dum lado, é um mentecapto que avança com um mija-berços; do outro, uma megera que empurra um chupa-terços!...Irra, que é dose! Mas estará escrito em algum evangelho que Jesus, mesmo criancinha, chuchava, mijava e bramia, ou desfilava na passerelle e telefonava ao Pai?! Hem?...Estou a falar chinês?...Ó Honoriobardo, tu que andas lá sempre de roda dos livros e das bibliotecas, elucida lá estas galinholas desmioladas, estas ratas de sacristia, se não é verdade isto que eu digo!..."
O tio Honoriobardo, reformado da marinha e erudito autodidata desde então, seguia atentamente a polémica com o lóbulo esquerdo, mantendo, todavia, o direito adstrito à questão mais antiga - de saber se o avestruz podia ser denominado avestruz, ou ema, nandu ou casuar. Opinou pois à mais recente, sem deixar de ruminar a primogénita.
-"Bem...efectivamente, se o Jesus recém-nascido padecesse dessa incontinência proverbial a todo e qualquer bacorinho humano, bem certo seria que, em vez de ouro, incenso e mirra, os reis magos teriam comparecido com fraldas descartáveis!..."
-"Fraldas descartáveis, nem mais!...-Irrompeu o avô, reforçando o absurdo. - Fraldas descartáveis, arrastadeiras e escovilhões, estão a ver? Estão a ver a Nossa Senhora sujeita a cacas nauseabundas e repuchos sórdidos, ãh? estão bem a ver?!..."
Suspirando, dando corda à paciência, o tio Honoriobardo lá continuou...
-"...quanto a berrar, como faz o comum dos fedelhos recém-chegados a este Vale de Lágrimas (e por isso se chama ele assim), também não consta nada em auto, o que de resto a ter-se passado ocasionaria a que o malvado Herodes lhe tivesse deitado a unha, coisa que, como é sabido, não aconteceu..."
-"Ah-Ah!...O Herodes, o cabrão do Herodes! Ora aí está: repimpem-se! (que é como quem dizia:"tomem, embrulhem!") - Atravessou-se de novo o decano, para sublinhar o apontamento.
-"Ó avô, quem era o cabrão do Herodes?" - Não se conteve, ingénuo e curioso, um dos míudos.
-"Um pedófilo!...Um desses..." - Rosnou, o velho, e escarrou com desprezo na carpete, como que a purgar-se de tamanha e tão desprezível obscenidade.
-Ah..." - fez o minorcas, esclarecido; -"Francamente, papá!...", fez, por sua vez, a nora deste e mãe do anterior, correndo em busca do balde e esfregona.
-"Tecnicamente, pai, não seria pedófilo, mas pedófobo..." -Aproveitou, o tio Honoriobardo, para corrigir e retomar a palavra.
-"Pedófilo, pedófobo, pedófago, pedagogo, pedregulho, vai tudo dar ao mesmo! Caganitas! São ogres que comem criancinhas, chiça!...Avança, homem, e deixa-te de pintelhices!...Vai direito ao assunto, pôrra!" - Condensou, furiosamente, o ancião.
-"Bem...-prosseguiu, resignado, o tio Honoriobardo -, quanto à hipótese do menino Jesus se comunicar telefonicamente com Deus Pai é certamente peregrina, mas não se sabe se bem-vinda. Pressuporia a existência dum satélite, de antenas e retransmissores, equipamentos de que não há qualquer notícia ou prova documental. Deus Pai, é sabido, não telefonava: enviava pombos ou anjos estafetas; também não carecia que lhe telefonassem, pois possuía uns ouvidos tão ubíquos e infinitos que não havia alfinete a cair que ele não ouvisse, fará certas conversas e desabafos."
-"Ora aí está! - Aplaudiu o avô, triunfante. -Ouviram bem? Que me dizem a isto, hem?! E agora fala-lhes daquela parte onde Nosso Senhor anuncia que há-de voltar e bem armado!..."
-"Com efeito. -Confirmou o erudito. - Mateus 15-30, se bem me lembro. Voltará com a espada, é garantido."
-"Pois aí tendes, ó ímpios! - Bradou, eufórico, o velhinho. -'Espada', claro está, é força de expressão. Significa arma, equipamento bélico, tira-teimas! A profecia não deixa dúvidas: Jesus há-de voltar, armado até aos dentes, passado dos carretos, para pôr esta canzoada toda a ferro e fogo! Olá se não!...Irra, que há-de ser um braseiro lindo de se ver!..." E, com um brilho sonhador e visionário a iluminar-lhe o rosto, concluiu: "Por isso, diabos me levem, se não é o Bebé-rambo que merece ir para as palhinhas, com metrelhadora e paraquedas, que se jesus cá descesse agora bem inútil e escassa seria a espada e bem melhor lhe quadraria a bomba H e o lança-chamas! A não ser que me digam que Deus é um unhas-de-fome, um caquético esclerosado, que não quer saber do Filho para nada!..."
Tão fulgurante argumentação não colheu, todavia, o consenso esperado. O tumulto parlamentar reinstalou-se. Clamava a sogra contra o militarismo e a favor do bebé-model; gralhavam as primas contra a artificialidade e a favor do bebé chorão; ameaçava, mais alto que todos, o avô, com raides comando e heliassaltos arrazadores, na figura do Bebé-rambo (assessorado, para mais, pelo padrinho e dois netos que, em jeito de estado-maior e gabinete de crise, lhe rogavam que não esquecesse o desembarque anfíbio e a infantaria motorizada).
-"Tragam-me os bombardeiros!" -Ordenava já o ancião, em vias de perder definitivamente a tramontana e cada vez menos inclinado a democracias.
-"Isso, avô! -Gritou, entusiasmado, um dos pirralhos. -faz como o Bush!"
O desvairado estratega e cabo de guerra natalícia acusou o toque e apressou-se a desfazer equívocos:
-"Qual cabrão de Bush, qual carapuça! Merda dessa é na capela do Júlio de Matos, meu filho. Faço mas é como o Hitler, o Alexandre, o Napoleão!...Esqueçam os bombardeiros: tragam-me antes a falange grega, os panzeres, a artilharia!..."
-"Não se esqueça dos submarinos..." - Segredou-lhe o padrinho.
-"Pois! E os submarinos, carago!..."
Estava-se mesmo a um passo da terceira guerra mundial, quando ele, na sua qualidade de dono-da-casa, filho do futuro tirano, genro da sogra, afilhado do padrinho, primo das primas e outros títulos que tais, lembrou que o bacalhau estava a ficar frio e o gato Pimpão já rondava uma posta do rabo.
-"Levaram o menino Jesus para o crucificarem, e tu falas-me no bacalhau!?...Irra!!" - danou-se ainda mais, o avô. (...)»
- André Faust , in "Struchio Camelus Natalicius"
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16 comentários:
ehehe se ninguém se atreve a reconhecer a ignorância atrevo-me eu: não sei ":OP
não sei não, mas podia muito bem ser teu, ora, why not?
":O)
Tomara eu, ó Zazie!...Tomara eu.
então? estás à espera de mais ignorantes ou vais dizer quem escreveu isso!
":O)))
Estou à espera, pelo menos, que o José se pronuncie. Mas parece que o senhor gajo foi a banhos...
ehehhe, eu sabia que estavas à espera do nosso amigo josé. Vais ver que foi mesmo a banhos, o danado. Mas esperemos por ele, pois então.
E assim sendo aproveito a enterrar-me ainda um pouco mais na minha reconhecida ignorância: o bacano é brazuca, não?
para repor um milímetro de esquilíbrio, sempre te digo que estes comentários deviam ter aquele linkinho em baixo que permite volta à página inicial... ":O.
Quem é que é brazuca? O josé?...Não me digas!...
não! loooooooooooolll o josé não é nada brazuca eheheh o avestruz é que podia ser ":O)))
Segundo o autor, o avestruz é australiano.
não digas já quem é que eu linkei o desafio na Janela ";O)
Pois acertaram mesmo! E que bem que se estava na praia da Falésia...e que tempo de Verão cálido antes do tempo! Sem televisão, rádio ou net! Só jornais e, mesmo assim, rarificados e a quilómetros de distância!
Sabem o que me impressionou?! A quantidade de máquinas a custar para cima dos dez mil contitos que vi nas estradas do sul! Mercedes, Audis, Bmw´s, Volvos! É demais! Melhor que na Itália ou na França!
Somos um país do caraças. Há dois anos não era tanto, caramba! Ainda dizem que o PIB não arranca?!!
Fiquei com vergonha de passar na avenida da marina de VIlamoura com o meu carrito de 1400 cc a gasolina...e a verdade é que não passei, pois ontem foi a pé, enquanto os tugas pintados se frustravam de olhos postos nos écrans de plasma, a mostrarem em dimensão grande, a pequenez do nosso futebol.
Bem, quanto ao texto:
Prosa dos anos noventa. Autor mediano e escrita ainda por burilar. Não é das prosas que mais aprecio,mas não envergonha ninguém e dá para ler com alguma piada.
COmo leio pouco, aposto no escuro do Bastos, Baptista. Mas sei que o Bastos até escreve melhor. É pena que sejam só croniquetas de trazer por mesinha de cabeceira. Por isso, posso escolher outro, ao acaso da imaginação e do parece que é:
Mário de Carvalho.
Pois acertaram mesmo! E que bem que se estava na praia da Falésia...e que tempo de Verão cálido antes do tempo! Sem televisão, rádio ou net! Só jornais e, mesmo assim, rarificados e a quilómetros de distância!
Sabem o que me impressionou?! A quantidade de máquinas a custar para cima dos dez mil contitos que vi nas estradas do sul! Mercedes, Audis, Bmw´s, Volvos! É demais! Melhor que na Itália ou na França!
Somos um país do caraças. Há dois anos não era tanto, caramba! Ainda dizem que o PIB não arranca?!!
Fiquei com vergonha de passar na avenida da marina de VIlamoura com o meu carrito de 1400 cc a gasolina...e a verdade é que não passei, pois ontem foi a pé, enquanto os tugas pintados se frustravam de olhos postos nos écrans de plasma, a mostrarem em dimensão grande, a pequenez do nosso futebol.
Bem, quanto ao texto:
Prosa dos anos noventa. Autor mediano e escrita ainda por burilar. Não é das prosas que mais aprecio,mas não envergonha ninguém e dá para ler com alguma piada.
COmo leio pouco, aposto no escuro do Bastos, Baptista. Mas sei que o Bastos até escreve melhor. É pena que sejam só croniquetas de trazer por mesinha de cabeceira. Por isso, posso escolher outro, ao acaso da imaginação e do parece que é:
Mário de Carvalho.
então? vai levá-lo contigo?
";O))
então big chefe...?
??? queres contar mais umas coisas?
quem é?
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