quarta-feira, junho 02, 2004
SÍSIFO E OS ESCARAVELHOS-DAS-BOLAS
Sísifo não pensa. Está absolutamente concentrado na sua tarefa, obceca-o o seu trabalho. É uma ocupação eterna, circular, sem princípio nem fim. Sísifo empurra o pedregulho pela encosta até ao cimo; aí chegado, o pedregulho, por força da gravidade, torna a rebolar cá pra baixo. É um jogo entre a força humana de Sísifo e a força fatal da gravidade. E é, sobretudo, um suplício, um castigo divino. Sísifo cumpre pena perpétua, para sempre alheio e esquecido de tudo o resto.
Qual foi o crime inexpiável de Sísifo?
A mitologia diz que foi o homem mais sábio e astuto do seu tempo.
(«A lenda mais conhecida sobre Sísifo conta que aprisionou Tânato, a morte, quando esta veio buscá-lo, e assim impediu por algum tempo que os homens morressem. Quando Tânato foi libertada, por interferência de Ares, Sísifo foi condenado a descer aos infernos, mas ordenou à esposa, Mérope, que não enterrasse seu corpo nem realizasse os sacrifícios rituais. Passado algum tempo, pediu permissão a Hades para regressar à Terra e castigar a mulher pela omissão e não voltou ao além-túmulo senão muito velho.»)
Portanto, Sísifo renegou os deuses e a morte. Quer dizer, encantado consigo e com o seu engenho, deslumbrado com a sua astúcia e cálculo, em suma: ensoberbecido com os meios, escarneceu e desdenhou de princípios e fins.
A vida humana é passagem. O próprio Nietzsche chamava-lhe "ponte". Se, passados estes milénios todos, ainda não percebemos essa verdade elementar, então, ao contrário dos tão cantados seres racionais, não passamos de primatas inapelavelmente estúpidos. Se já o soubemos, mas, entretanto, esquecemos, então somos estouvados e negligentes. Se sabemos, mas não temos tempo para pensar nisso (porque uma série de ocupações cada vez mais absurdas não nos deixam), então, muito provavelmente, imitamos e recriamos Sísifo séculos adiante.
Uma ponte liga duas margens. Não é propriamente um tapete voador a pairar sobre o abismo. O único com critério bastante para fazer do abismo espelho será Deus. Está lá no alto, quando está. Ao homem cumpre-lhe caminhar, ser caminho, viagem, odisseia. O caminho -a ponte-, faz-se caminhando. Se em vez de caminhar e ser caminho, o homem esquece os princípios e os fins e se fecha numa reflexão umbilical, convencido que é ele próprio Deus e ele próprio abismo e, por conseguinte, ele próprio ponte de si para si e por cima de si, então, mais que diante do ser mais astuto sobre a Terra, estamos diante duma cultura ou civilização que regride e se degrada cada vez mais, pasto de imbecilização, autismo e, em estágio assolapante, esquizofrenia.
"Penso, logo existo!" - Que gloriosa proclamação sobre as trevas! Mas pensas em quê, ó Descartes? Acima de tudo: pensas porquê e para quê?
Porque se não cogitas em nada, nem por causa de nada, nem para nada, então certamante existes, sem dúvida - como todos os teus epígonos pelo tempo fora: racionalistas, cientistas, positivistas e liberais -; mas apenas para empurrar esse pedregulho que te conforma o pensamento e donde derivas a existência. Não tanto à maneira de Sísifo, há que reconhecê-lo, mas mais ao jeito dos escaravelhos-das-bolas*. Acreditas que assim, feito dessa matéria adesiva, chegado ao topo, não rebolará cá pra baixo?
E vós todos, ó descendentes multiplicadíssimos da postura cartesiana: é nisso também que acreditais?...
*Escaravelho-das-bolas
Geotrupes stercorarius
«Besouro esterqueiro ou escaravelho-sagrado é um insecto coleóptero grande, 10 a 25 mm de comprimento, tem cor negra ou quase negra e o corpo é revestido por quitina espessa e coriácea.
As patas anteriores possuem espinhos para poderem escavar as tocas que se situam por debaixo do esterco.
Os machos distinguem-se perfeitamente das fêmeas pelas antenas.
As bolas de esterco são levadas para as tocas e, é nessas bolas, que põem os ovos e guardam as larvas até estarem aptas a sobreviver.
As larvas possuem maxilas poderosas e alimentam-se do mesmo tipo de alimentos que os adultos.
São comuns na região mediterrânica e encontram-se nos prados e pastagens durante todo o ano.
Estes, com um ou mais besouros aparentados, foram considerados símbolos da ressurreição e da imortalidade, pelos antigos egípcios. »
Derivado certamente disso, a humanidade em geral, acredita hoje, piamente, que essa actividade redentora típica e hipnótica do escaravelho -agenciamento e recolecção de bosta-, resgata-la-á, num futuro próximo e garantido, da velhice, da criancice e, nec plus ultra, da morte.
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