quarta-feira, junho 16, 2004

CURRICULUM MORTIS (ou da Self-Made-Mania)



I ACTO - A Ascensão

Quando nasce, a mãe morre. Em casa é um susto tremendo. A precocidade, contudo, não tarda a confirmar-se...
Aos sete meses de idade, esmaga entre os deditos ágeis a sua primeira pulga incomodativa. Aos dois anos, degola meticulosamente moscas e desmembra baratas com assinalável método e engenho.
Pelos seis, já depena o periquito e despenha subreptciamente o cão da varanda. Duas semanas depois, é a vez do gato aparecer estorrado no forno. A família começa a dar sinais de transtorno e desnorte. Consultam-se bruxas e videntes; um exorcista é chamado. Benzeduras e aspersões abatem-se. Os mistérios, todavia, não arredam. Pelo contrário, adensam-se. Episódios macabros irrompem. Uma prima amanhece enforcada.
Apavorada,, suspeitando duma intervenção satânica, a familia abandona a casa, a vila, a província. Migram para a capital.
Debalde. Inexorável e infalível, persiste:
Com doze anos, descobre a química. Ensaia as primairas experiências no chá da avó; com arsénico. A incauta anciã demora três meses até recolher ao cemitério. Seguem-na, a intervalos regulares, duas tias e um capitão reformado, galante cortejador da mais nova.
Aos quinze, reúne pólvora suficiente para enviar o professor de matemática em viagem pela sala e de visita ao andar de cima, não fosse o tecto. Vai ao funeral para não criar suspeitas.
No ano seguinte é o vizinho do lado que aparece no fundo dum poço, com cadeira de rodas e tudo. Ninguém percebe. Nem desconfia. A sua popularidade cresce a olhos vistos.
Dedica-se à música e mata o pai com um violino. Esconde o cadáver dentro dum caixote, que despacha, via marítima, para a Argentina, ao cuidado dum personagem imaginário. Em casa, todos o admiram. Pressente-se, pela primeira vez, fadado pela Providência a grandes feitos e cargos. Aproveita para ensaiar infanticídios com uma tuba.
Completa desassete retorcidas primaveras quando se apaixona. É correspondido. Depara-se, não obstante, com a firme relutância do pai da eleita em devir seu sogro. "relutância" é mesmo eufemismo: na verdade, é de hostilidade feroz, inexplicável, coroada com vias de facto, que se trata. Acompanhada, ainda por cima, dum corpanzil imenso de estivador efectivo. Tabefes sonoros e pontapés abruptos não tardam a experimentá-lo. Vê-se despedido porta fora, nimbado de injúrias e remoques depreciativos. Sombrio e carrancudo, retira-se. Mas, em silêncio, com frieza patibular, jura vingar-se. Uma semana depois, subitamente, durante a sesta, o progenitor recalcitrante explode. Dois quilos de trotil estratégicamente colocados prontificam-no para o destaque nas páginas de necrologia dos jornais. Os familiares levam três dias a recolher os fragmentos e outros tantos a tentar resolver o puzzle. Por fim, desistem, resignados a um montículo simbólico. O funeral decorre entre grande luto e consternação de toda a vizinhança. Comentam-se, à boca pequena, enredos complexos e acusam-se, entre outros, os extra-terrestres.
Sem mais empecilhos nem obstáculos aos seus intentos, o nosso herói casa-se, finalmente, numa manhã de Abril, entre rejúbilo e nuvens de arroz. Parte para lua-de-mel num "Cadilacc" alugado e, logo no arranque, simulando uma falha rangente na caixa, aproveita para atropelar o padrinho distraído e dois cunhados bêbedos.
As responsabilidades de chefe de família começam, a partir de então, a afligi-lo. Vê-se compelido a largar os estudos musicais e procurar emprego remunerado. Falha como motorista de autocarro: este descontrola-se numa das principais praças da capital, levando a esmo transeuntes e explanadas. Um obituário record sobrevém. O despiste redunda em chacina. No mesmo dia, ganha foros de primeira página e dá brado internacional. Polémicas e debates eclodem. Debulhado em lágrimas, exibem-no no telejornal. As opiniões dividem-se, mas, por fim, uma vaga de fundo prevalece. Promovem-no a administrador.
Investe na especulação imobiliária e torna-se empreiteiro. Constrói edifícios em tempo incrível, que ruem mais rapidamente ainda, soterrando todos os inclinos. Após uma célebre entrevista na televisão, é chamado para a pasta das Obras Públicas. Aceita e propõe-se , de imediato, resolver todos os problemas que for capaz de inventar. Inventa vários. Que resolve no mesmo dia. O êxito não podia ser mais retumbante: é aclamado herói nacional e paradigma das gerações vindouras.
Inebriado, aposta nas novas tecnologias e igrejas. Congemina e desenvolve o chamado marketing lobotómico (consiste num cocktail inefável de tecnicas de genocídio subtil à mistura com rituais compulsivos de suicídio colectivo, procedido de doacções legatórias). Analistas consagrados são unânimes em reconhecer-lhe uma clara inspiração divina, dotes imaculados de profeta, mas hesitam entre a reencarnação de Jesus ou Buda. Alguns, mais visionários e entusiastas, descortinam mesmo nele um novo Staline filantrópico ou um Hitler sentimental. É beatificado, por antecipação.
Com trinta anos, a vida sorri-lhe. Pai de duas lindas meninas, enviúva da primeira mulher que, providencialmente, se suicida com três tiros na cabeça.

(continua...)

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