domingo, junho 13, 2004

A ODISSEIA DO RANCOR


«Aplicamos o melhor das nossas vigílias a esquartejar em pensamento os nossos inimigos, a arrancar-lhes os olhos e as vísceras, a espremer-lhes e a esvaziar-lhes as veias, a espezinhar e esmagar cada um dos seus órgãos, ao mesmo tempo que por caridade lhes deixamos o gozo do seu próprio esqueleto. Feita esta concessão, acalmamo-nos, e, repassados de fadiga, deixamo-nos deslizar para dentro do sono. Repouso bem ganho depois de tanto encarniçamento e minúcia. Devemos de resto recuperar forças para conseguirmos na noite seguinte recomeçar a operação, reentregando-nos a uma tarefa capaz de desencorajar um Hércules cortador. Decididamente, ter inimigos está longe de ser uma sinecura.
O programa das nossas noites seria menos carregado se, durante o dia, tivéssemos ensejo de dar livre curso às nossas más inclinações. Para alcançarmos não tanto a felicidade como o simples equilíbrio, teríamos necessidade de liquidar um bom número dos nossos semelhantes, de nos consagrarmos quotidianamente à prática do massacre, seguindo o exemplo dos nossos muito afortunados e muito remotos antepassados.(...)
Nada nos torna mais infelizes que o dever de resistirmos ao nosso fundo primitivo, ao apelo das nossas origens. Daí resultam estes tormentos de civilizados reduzidos ao sorriso, atrelados á cortesia e à duplicidade, incapazes de aniquilar o adversário a não ser em palavras, votados à calúnia e como que desesperados por termos que matar sem agir, através de simples virtude da linguagem, esse punhal invisível. As vias da crueldade são diversas. Substituindo-se à selva, a conversa permite à nossa bestialidade dispender-se sem dano imediato para os nossos semelhantes. Se, pelo capricho de uma potência maléfica, perdêssemos o uso da fala, ninguém mais ficaria em segurança.»

Uma derradeira charada: Quem escreveu isto?
Desta vez dou ajudas:
a) É um filósofo do século XX (o que melhor escreve, quanto a mim);
b)É de origem Romena (mas radicado em França);
c) O título do post e do ensaio a que o trecho citado pertence são iguais;
d)Nasceu na Transilvânia, em 8 de Abril de 1911.

Um último motivo para meditação: segundo a tese aqui prescrita, quanto mais os cidadãos duma determinada sociedade se entregarem a palrarias e debates retóricos (não necessariamente políticos), mais inofensivos e domesticados se tornam.
Nesse sentido, o facto dum regime permitir que se diga mal dele, que se converse e labie - aberta e depreciativamente- a seu respeito, que se pensem e meditem os projectos mais sombrios, só beneficia a sua longevidade e segurança.
Traduzido para o vulgo: "Cão que ladra não morde."
Curiosamente, a realidade não o desmente: ladra-se cada vez mais e morde-se cada vez menos. Descarrega-se a bílis, sublimam-se os ódios e fica-se pronto para mais uma viagem, atrelado à nora, de roda do poço.

3 comentários:

zazie disse...

o malandro do josé estava na brincadeira lá nos naquitos e lixou-se ":OP
ehhehehe, eu guardo-lhe uma gambita ";O)

Bruno Santos disse...

Caramba, Dragão! Depois do Céline e do Nietzsche, o Cioran! Ainda há pouco, há poucochinho, estive a reler o «Syllogismes de l´amertume» e o «Exercices d´admiration», este último com alguns retratos inigualáveis de autores que muito admiro. E depois aquela veia aforística do Cioran...! Que delícia!

dragão disse...

É pra que vejam!...nesta caverna não se brinca.