segunda-feira, abril 01, 2024

Esperança e Nostalgia (através do Labirinto)

 



A Viagem mais famosa do Cosmos, paradigma cultural de todas as subsequentes peregrinações poéticas, fê-la Ulisses no seu regresso a casa, após a Guerra de Tróia. Homero contou-a aos gregos; os gregos legaram-na à humanidade, e dela emergiu uma civilização. O itinerário dessa viagem faz-se entre terras, ilhas e portos, mas através do mar: é, pois, uma viagem essencialmente marítima. Nesse sentido, é uma digressão sobre uma superfície perigosa e instável, feita de abismos, vertigens, monstros, falsos paraísos e forças sobrenaturais que, de certa forma, encontra o seu clímax, na descida ao Hades, o lugar dos mortos. É, por conseguinte, uma aventura entre mundos  -  o estrangeiro e o de casa, o ignoto e o familiar, o dos antepassados e o dos vindouros (ou os mortos e os vivos). Por isso, além de profana, é uma demanda religiosa: reúne, religa, confere sentido, entre a origem e o fim - o destino da viagem é reencontrar o seu ponto de partida. Ulisses percorre o labirinto, só que não se trata do dédalo inventado, mas daquilo que ele simula: o caos enquanto não mapeado com o fio do sentido. Como todos os grandes heróis civilizacionais, Ulisses desvela e descobre o cosmos. Percorre o labirinto, mas fá-lo ao leme dum navio. No que inspirará os gregos tanto quanto um outro povo meridional muitos séculos adiante: os portugueses. Eu próprio, pelos meus oito anos, deslumbrei a minha professora primária quando, a propósito duma redacção sobre a nossa terra natal, rompi nos seguintes termos: "A minha terra foi fundada por Ulisses, o Navegador..." e por aí adiante. Consegui, desde essa data, conforme bem me lembro, acumular três cargos:  o de melhor aluno e de maior arruaceiro dos recreios (que já era antes) com o de favorito da professora (que passei a ser). O facto de conciliar na mesma pessoa o melhor aluno e o maior bruto, de resto, já manifestava a minha tendência precoce para o paradoxo. Conseguia estar horas a ler cartapácios sobre a Grécia antiga (no que, dizem, entrava num estado de alheamento total), e conseguia, com não menor dedicação, andar horas à porrada, sobretudo com o Moreira, o tipo mais corajoso que conheci, pois perdia sempre e nunca desistia. Um verdadeiro Heitor, Deus o guarde!... Contudo, se repararem bem, há uma lógica contundente nisto tudo: era Ulisses, na sua dupla natureza que me inspirava - por uma banda, o Ulisses sagaz da Odisseia; por outro, o Ulisses beligerante e pugnaz da Ilíada. Ora, as emulações, por mais precoces e minorcas que sejam, devem ser sérias, devem ser completas. 

Mas a viagem de Ulisses é sobretudo simbólica: a odisseia significa e profetiza todas as odisseias (desde a vida humana às aventuras cósmicas de cada povo). Funciona como uma espécie de metacartografia íntima da existência. O próprio cristianismo, na figura do seu Fundador, cumpre a odisseia: oriundos de Deus, a Ele devemos regressar. É o próprio Deus que abre o caminho, dando o exemplo. A Fé, que Jesus nos revela e disponibiliza, é a confiança num regresso a casa - é o fio (o con-fiar) do sentido que nos permite vencer o labirinto. Só que este, doravante, como mar da alma humana, tão inçado de abismos, monstros e perigos quanto o mar de Ulisses. A saída, não obstante, coincide com a entrada: a morte e o nascimento apenas prenunciam a perfeição do círculo... A eternidade, onde tempo e espaço se geminam e perpetuam. 

O fio da Fé é também o fio de Penélope e da Moira que tece: Penélope que aguarda, o Destino que concede e a Fé que conduz. A partida, a viagem, o regresso. Os gregos chamavam "nostos" à volta, ao caminho de regresso; e "algos" à dor. A Fé de Ulisses é a de todos nós: a saudade de casa. A Fé é uma nostalgia, como a nostalgia é o anseio excruciante, doloroso de voltar à pátria. Não se explica: sente-se. Bem entendido, a Ítaca de Cristo é o Céu.

Entretanto, também o ponto de partida anseia pelo regresso daquele que partiu: move-o por atracção, quer dizer, move-o à distância, ao longe, pelo coração - como o Deus de Aristóteles faz mover o cosmos. A suprema felicidade coincide assim com a extrema gravidade. É a mais séria das seriedades. Jesus chama-lhe amor, como já Aristóteles tinha chamado. O mesmo amor que compele Ulisses: amor à mulher, aos filhos, aos pais, à Ítaca onde reinou e voltará a reinar. Antigamente, isto tinha um nome síntese: amor à Pátria. Por outro lado, Ítaca não é Ítaca sem Ulisses; Ulisses não é completamente Ulisses sem Ítaca. A Esperança e a Nostalgia espelham-se no fazer e desfazer das noites e dias, como no tecer e destecer do tapete de Penélope. Falta Ulisses a Ítaca, tomada pela ilegitimidade e a delapidação dos pretendentes - o falsos candidatos à pretensa eleição duma Penélope desamparada. Penélope que, ao contrário de Clitemnestra, se mantém fiel - nunca perde a fidelitas nem o fio. No fundo, pressente-se a ponta desse mesmo novelo que conduzirá, nalgum dia, Ulisses até ao desenlace final - onde a Esperança e a Nostalgia se reencontram e se curam mutuamente. Ulisses também significa o portador da cicatriz e o que cicatriza; ele, o herói, que, para lá da aparência, se identifica através da cicatriz. Como Cristo mostrará as cicatrizes a Tomé. .

Mas se Penélope tem o fio, Ulisses opera um outro instrumento essencial à viagem, à náutica: o leme da nau. Ulisses é o chefe e o piloto da expedição. Cybernos, diz-seno grego clássico. A direcção e orientação da nave é o seu mister e a sua excelência. Na realidade primeira e original, um cybernautes - o cybernos da naos. Através de Cyla e Caribdis, do Canto das Sereias, da suinicultura de Circe, do matadouro de Polifemo, de praias e naufrágios, e até da Olissipo dum miúdo excêntrico de milénios adiante, Ulisses terá alguma vez perdido o rumo, mas nunca perdeu o fio nem o fito. E num dia perfeito como só as histórias reais alcançam, desembarcou mendigo no mesmo lugar donde outrora partira rei. Todavia, sob a máscara do tempo e da viagem, trazia consigo, intacta, a força da autenticidade e o cybernos que a Ítaca faltava. Uma Ítaca que, finalmente, recuperado o seu chefe e piloto, podia levantar âncora e zarpar pela Eternidade. Onde eu, pelos meus oito anos, juro, a vi passar.

Agora a chave: Sabem qual é a palavra que no português, na língua que nos resta, traduz e materializa, ainda hoje,  integralmente, e apenas aí, cybernos

- Governo.



PS: O que distingue o Mito da História é que aquele nunca perde a actualidade nem a autenticidade. A História trata da encadernação de versões de relatos; o Mito trata da verdade eterna. E tanto assim é que ainda hoje, nós, portugueses derradeiros, experimentamos uma "Ítaca" tomada pela ruína e devassidão de pretendentes, por via da ausência do Cybernos autêntico. Lá está, porque também, ao contrário da História, que passa, o Mito permanece. E permanece vivo. Quanto ao essencial, aprendi com o Moreira: nunca desistir, nunca perder a fé. E nisso, proclamo ao mundo, venceu-me: era mais valente do que eu. Eu era apenas mais forte. 



9 comentários:

Anónimo disse...

Meu caro:

Um dos mais bonitos textos, que bem podia preambular uma Antologia sua.

Permita-me só uma pequeno reparo. - A nostalgia grega não é exctamente o mesmo que a nossa saudade, que não se satisfaz com o mero regresso a casa: só estamos bem onde NUNCA estivemos...

A diferença que vai do círculo do Mesmo à espiral do sempre Mais e mais, ou duas maneiras de viver o infinito.

dragão disse...

«A nostalgia grega não é exactamente o mesmo que a nossa saudade»

Pois não. Embora no meu caso especial, tendo experimentado ambas, aquando da minha odisseia pessoal, não vislumbrei grande diferença. Mas também não me alço a exemplo paradigmático do quer que seja.

Não obstante, essa sua achega tem muito interesse.

muja disse...

https://x.com/RobertTalisse/status/1774951478022521116?s=20

Anónimo disse...

O post belíssimo e o comentário do Muja lembraram-me também de um personagem muito comovente, o belo e fiel Argos.
Aí está outro que não deixou de acreditar no regresso de Ulisses. E foi o único que o reconheceu, depois de tantos anos, envelhecido e esfarrapado.
Talvez haja aqui outra lição dos Gregos.
O que teria Argos reconhecido que mais ninguém viu?

Miguel D

Fernanda Viegas disse...

(...)Eu próprio, pelos meus oito anos, deslumbrei a minha professora primária(...)
E continua a deslumbrar caro Dragão. Estive à procura de uma palavra que descrevesse o que sinto quando leio os seus textos e a palavra é deslumbramento.
Nietzsche em "Assim falou Zaratrusta" diz que "a criança é o ser que embora vivendo na finitude cria a realidade que deseja." Assim foi, assim continua a ser.







Anónimo disse...

O meu caro, é certo, também não identificava, estrita ou latamente, a nostalgia e a saudade: limitou-se, de passagem, a associá-las.

Já agora, pernita.me outro reparo. O meu dicionário de grego (Bailly) não conhece "cybernos", apenas "kybernétês" e "kybernétikos", de onde derivou efectivamente o "governo", os velhos e os novos "cibernéticos" em construção.

dragão disse...

Grafei com "Cê" para facilitar a "leitura" e o sentido que hoje ganhou espuriamente com a "ciber" coisa. Um pouco como kynicos fica mais facilmente compreensível por "cínico". Foi opção minha. Sacrifiquei o rigor à eficácia.

Mas sim, no grego, é com k. E pode transcrever-se como (bem) aponta "kybernétes"- ou "kybernos" (veja na página seguinte, do Bailly,pp.1146). Na verdade, até citei de memória e a partir do verbo raiz "Kybernáw".

Lou disse...

Um texto muito belo...

Para mim... nostalgia é saudade de algo não vivido... enquanto saudade é nostalgia de algo vivido...

Anónimo disse...

Belíssima prosa .