domingo, abril 07, 2024

A Minha Odisseia - I. O primeiro dia



«Não é apenas, ocasionalmente, que atrás dum grande homem está uma grande mulher. É sempre: atrás de qualquer homem está uma mulher: aquela que o pôs no mundo. Maior exemplo de amor, valor e coragem não se conhece."               



A minha digníssima mãe, Deus a tenha e recompense, como já aqui referi, transportou-me dentro dela 9 meses e, mal eu saí cá para fora, tomou a minha educação a seu cargo. Aliás, em vez duma mãe mimadora e apaparicante, graças a Deus, a mim calhou-me em sorte uma mãe instrutora, cuja ocupação sagrada e principal era fazer de mim um homem. E desde pequenino!... De tal ordem que, quando, pelos meus seis anos, me foi depositar à escola, eu já ia educado. E não apenas educado: instruído em boa medida. Os rudimentos de ler, escrever, contar, assinatura, rubrica, caligrafia, tudo isso, já ela me ministrara. Mas isso era apenas a ponta do icebergue: um aparato nada despiciendo da História de Portugal  também já me equipava as tenras meninges. Desde a devoção a Nuno Álvares Pereira, à espada pesadíssima do Fundador, aos dentes do Decepado, até aos domadores do Cabo das Tormentas e ao vencedor do Gungunhana, passando pelos milagres da Rainha Isabel e os expedientes da padeira de Aljubarrota, com um pincelada alógena à epopeia de Joana d'Arc, constituíam já a minha armadura mental no dia, dum Outubro qualquer, em que penetrei, pela primeira vez, os umbrais do estabelecimento público de ensino - uma daquelas escolas primárias monumentais e típicas do Estado Novo, meninos dum lado, meninas do outro. Na véspera, fora mesmo armado cavaleiro, com o seguinte e solene imperativo categórico: "não te metes com ninguém, respeitas toda a gente, mas se alguém se meter contigo, defendes-te, ouviste?! Livra-te de voltares para casa com queixinhas que te bateram: apanhas ainda mais!" A minha mãe, convém assinalar, era transmontana. Mas isso não era o mais terrível: o pior é que a mãe dela também era. E munida dum vocabulário camiliano que muito me fascinava, bem como de um feitio de antes quebrar que torcer -  viúva, criara cinco filhos, em batalha vitoriosa contra toda uma aldeia de semi-ciclopes. Para reforço da filha e por via das dúvidas, também ela, de visita à barbárie da capital, me crismou, em missa Te Deum, com o seguinte preceito civico": "Se algum bandalho te quiser bater, não prometes: dás-lhe logo; mas não é com a mão, pegas num pau e dás-lhe com ele pelos cornos abaixo!" Importa ainda referir que boa parte da  minha educação religiosa, praguejante  e nobiliárquica (os pergaminhos da família), fora ela a transmitir-mos.

Armado, então, destes belos princípios (que guardo e mantenho religiosamente até aos dias de hoje e, estou determinado a manter até à hora da minha morte), lá segui, pois, a minha mãe até à escola. Naquele tempo obscuro, as mães, pelo menos a minha, pilotavam-nos no primeiro dia, de modo a ensinar a rota, mas depois era connosco: passávamos a arrostar sozinhos (ou em bandos) todos os perigos da travessia (que ainda eram alguns). Além da não chorar, um homem, por muito minúsculo que fosse, não tinha medo. Era gente rude e muito pouco delicada, a daquela época. Enquanto seguia nessa viagem inaugural, meditava, intrigado, sobre uma questão operativa deveras perturbante: se ia para uma iminente refrega, para que raio me servia aquela bata branca - ia ingressar no corpo médico? Que vergonha, que descrédito, que desinteresse! A glória está em causar hemorragias, não em contê-las. De bem melhor dignidade (e vantagem) seria uma armadura e capacete, com espada ou maça de armas a condizer. Ainda tentei levar o arco, mas  a severa progenitora impôs-me, em descompensação,  a caneta de tinta permanente (era-me de todo inútil na primeira classe, mas ela devia achar que as armas não se portam por utilidade ou interesse, mas por princípio).  Enfim, não sei o que os outros fedelhos iam fazer à escola, provavelmente aprender a ler e a escrever. Eu, em contrapartida, lembro-me bem, ia para me bater em defesa da honra da Pátria e da minha família. Só depois de bem salvaguardada estas, estaria a minha própria reputação garantida. Firmemente disposto, assim, a não me desonrar e, comigo, a família e a Pátria, despedi-me da minha mãe e acometi os portões daquele Adamastor. De relance, fitei o céu, semi-encoberto, donde Nuno Álvares, Afonso Henriques,  Vasco da Gama, Ulisses e a padeira de Aljubarrota me vigiavam, solenes e perscrutantes. 

Só depois de todos estes cuidados soberanos, dirigi os olhos para os meus futuros colegas. Estavam também todos vestidos com bata idêntica, o que me transportou a sombrias confabulações e desencantos. Ameaçava-me um tugúrio de enfermagem, quando o que eu aspirava era uma escola  militar!... Só então, provavelmente enviada pelos meus mentores e tutores celestes, me ocorreu uma ideia redentora: lembrei-me que também os homens do talho e açougueiros em geral trajavam uma bata semelhante. Animou-se-me o espírito e desassombrou-se-me o futuro... Entendia agora da utilidade e funcionalidade da bata: era para não sujarmos a roupa com o sangue do inimigo. Muito poupadas e previdentes, as mães do antigamente!...

Querem que vos conte a lúcida dedução que retirei do meu estudo daquela fauna durante a semana seguinte? Fica para o próximo capítulo. Mas posso ir já adiantando o essencial: falavam um dialecto abstruso, onde a estridência e a asneira colidiam em caótica competição; corriam sem sentido e manifestavam-se sem quaisquer noções da missão sagrada dum português no mundo. Apenas num ponto - melhor dizendo, num objecto - não me eram totalmente estranhos: a bola. Mas essa era, naturalmente, a excepção à regra. Pelo que, após aturada, discreta e distante observação, extraí o seguinte dogma empírico: eu estava confinado, durante o horário escolar, e sobretudo durante o recreio, a uma caverna de mini-ciclopes. Foi então que, por um qualquer processo misterioso, senti que Ulisses já não estava no céu, com os Outros, a vigiar-me: estava dentro de mim. A dar-me força...e argúcia subtil. Claro que nunca o contei a ninguém, muito menos à minha avó. Duvido muito que Odisseus apreciasse ser despromovido a Anjo da Guarda.



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