«Ali, pois, estava deitado o Argo, todo comido de piolhos. Como reconhecesse Ulisses, agitou a cauda e baixou as orelhas; mas já não tinha forças para se aproximar do seu senhor. Ulisses notou isto; e, voltando a cabeça, enxugou uma lágrima (...) Nesse momento, a morte apoderou-se de Argo, que tinha visto, há pouco, Ulisses.»
- Homero, "Odisseia, Rapsódia XVII
A história que Homero contou aos gregos, contou-ma a mim a minha mãe, pelos meus cinco anos. Fascinou-me desde esse dia. Mesmo sem todos os detalhes e peripécias, como as que pude ler anos adiante, foi esse relato oral que a mais profunda impressão me causou. Quase ao mesmo tempo que ela ma contou, ouvíamo-la, em conjunto, numa espécie de teatro radiofónico (ou radionovela) que havia nesse tempo mágico da minha infância. Não havia televisão, nem telemóveis, nem play-stations, nem nenhum desses venenos com que actualmente se prossegue em vida a interrupção voluntária da gravidez. Havia, isso sim, um rádio, como esse em epígrafe, do qual o meu pai era grande entusiasta. Como eram tempos obscuros e arcaicos, transmitia coisas prodigiosas, para os meus ouvidos minorcas, como a Odisseia, de Homero e, numa outra altura, se bem me lembro, com não menos espanto para mim, a própria viagem do Vasco da Gama. A ideia que, por comparação ao Portugal da minha meninice, faço deste onde ora anoiteço, é a de que caminho, alternadamente, entre um patíbulo e um cemitério. A ideia da morte perante esta qualidade de vida colectiva, é-me, por isso, cada vez menos penosa. Nunca tive medo da morte. Todavia, agora, suscita-me já, não apenas curiosidade, mas alívio. Graças a Deus que ela existe e nos abrevia as penas.
Mas falemos da eternidade. Dos heróis que não morrem. Começo pela peripécia que, na Odisseia, constituía para mim a mais formidável de todas: a gruta de Polifemo. Nada a suplantava em assombro. O diálogo radiofónico, encenado pelos nossos grandes actores da época, transportava-me milénios atrás e eu assistia ao confronto entre o herói e o gigante ogresco, simultaneamente horrorizado e maravilhado, como se lá estivesse ao vivo, numa espécie de transe onírico onde o tempo e a própria existência banal se viam ultrapassados. Indignava-me até com a história (e a momentânea impotência de Ulisses) quando Polifemo devorava os infelizes companheiros do navegador. Mirolho, desmedido e ainda por cima canibal, a imensa besta atentava em cheio contra o meu sentido de harmonia e justiça no mundo (mania que ma azucrina desde pequenino, sabe lá Deus porquê, porque só me tem acarretado problemas). Anos adiante, a minha espeleologia enriqueceu-se: desci à caverna de Platão e li relatos de Ésquilo acerca de seres mirmitónicos que habitavam em cavernas, antes de Prometeu os transformar em homens. Estes, portanto, tinham sido troglwdythes antes de se tornarem anthropos. Quase em simultâneo, do lado de fora da janela, constatei também uma grande algazarra e tumulto: estavam a transformar a minha própria Ítaca numa caverna. Em forma de rectângulo. Não só era toda a Grécia que reverberava em nós desde Camões que se impunham liquidar: era a própria condição vertical de Anthropos que urdiam banir. Importava remeter os habitantes, meus conterrâneos, ao estado mental de "trogloditas". Andam nisso há cinquenta anos. E não se pode dizer que tenham sido totalmente ineficazes.
Não obstante, o que significa, exacta e amplamente, "troglodita" tem o seu interesse. Cavernícola ou "homem das cavernas" ainda hoje se mantém actual. Troglos, como antron, pode significar caverna, buraco. Mas o "viver na caverna" remete também para um estado pré-civilizacional, pré-histórico, de rude selvajaria e brutal ferocidade meramente animalesca. Os trogloditas a que Prometeu concede a "humanidade" não passam de bestas, ou pior, insectos. "Viviam em cavernas, nas eternas trevas dos profundos antros, como formigueiros fervilhando. Faziam tudo sem entendimento, até eu lhes ensinar o nascimento e o acaso das estrelas mais difíceis de avistar"... Assim, logo à partida, o que o Filantrópico Titã produz não é uma criatura ad nihil (como certos demiurgos criacionistas), mas uma forma de ser superior. De certa forma, Prometeu protagoniza o proto-educador ou proto-pedagogo (aqui, educação e pedagogia no seu sentido originário, nobre), e, desse modo, promove o troglodita a um ser capaz de civilização. Mas esta não enquanto verniz ou cobertura meramente confeita, mas como sentido, como arte de orientação através das letras, das estrelas e das virtudes. E com isso alcança dois portentos: por um lado desagrilhoa da matéria bruta um ser pensante (e por isso tem que pagar, de modo a reequilibrar o cosmos, com o seu próprio agrilhoamento); por outro, liberta um - como evoca o coro da Antígona, que ainda reverberará no século XX num dos últimos grandes textos da Filosofia, a "Introdução à Metafísica", de Martin Heidegger) - "deynos", ou seja, o mais terrível dos prodígios do mundo - um ser, que Sófocles descreve logo de contínuo como "aquele que faz o seu caminho pelo meio dos abismos" (o ser que navega, enfim). O homem, em suma, potencia-se como um ser perigoso, porque doravante, armado da múltiplos expedientes, capaz do bem e do mal. Que nasce, e cresce desde esse berço mítico, sob a vigília perpétua de duas esfinges à cabeceira: a Sabedoria; e a Hubris. A sabedoria que o eleva, ampara e guia através o abissal caminho; a Hubris que o embosca, atrai, vertiginosa, e o arrasta à perdição e ao naufrágio. E eis o paradoxo vivo, o paradoxo humano: o passageiro da Bênção e da Maldição, do espírito subtil e da matéria bruta, do cosmos e do labirinto. O Antropos, no fundo, aquele que transporta em si a contradição - a antro onde retrocede e a criança que do antro se evade e para fora do antro conduz. A arte de Prometeu tem um nome: antro-paideia.
Ora, o aviso da Antígona é solene e perdura: «Embora invente sábios e úteis expedientes para além de toda a esperança, caminha necessariamente para o mal ou para o bem. Quando ele respeita as leis da pátria e dos númenes, engrandece a cidade; mas torna-se a sua ruína quando a soberba o empurra para o mal. Não esteja a meu lado, não fale mais comigo quem actua de tal forma.»
Da mesma forma, tornando agora a Polifemo, este representa, em monumento avantajado, esse trogloditismo a que o Antropos, tomado da Hubris, retrocede e reflui, denegando e desprezando toda a dádiva benévola que originalmente o acendeu, melhor dizendo, o animou. Trata-se, em bom rigor, duma desalmação ou desinspiração exorbitada; um completo, desmedido e arrogante embrutecimento. Polifemo afirma-o sem rodeios: "Os Ciclopes não temem nem Zeus (...) nem os outros deuses bem-aventurados! A todos eles somos superiores!" E antes, já Homero descrevera: "Cíclopes, homens soberbos e sem lei, mas tudo lhes nasce espontaneamente, sem ser preciso semear nem lavrar..." *
Digamos então que o Ciclope representa o "troglodita", o primitivo antropóide no seu estado de pura "natureza", absolutamente silvestre e asselvajado. Por um lado, faz corar Rousseau; por outro, anuncia toda a vasta turba de utopistas ateus do nosso tempo. A subsistência cai-lhes do céu e a sua soberba superioridade em relação aos deuses nem se discute. Bem como a antropofagia mental e económica, encetada num labiríntico antro chamado Mercado ou Estado Socialista, em que invariavelmente descambam. De resto, da mesma raiz que "trwglhe" (cova, buraco), trwgw significa, muito alusivamente, "devorar", "comer cru". O que assinala muito bem um dos vícios psico-alarvajantes desta troglo-gentalha, sempre disposta a ingurgitar toda a espécie de porcarias ou mixórdias sem qualquer tipo de preparo, asseio ou tempero.
E tanto assim, que é muito sugestivo e emblemático, o diálogo entre o herói e o megabruto, falando aquele pela Sabedoria e este pela Hubris: o primeiro declara-se, humildemente, "ninguém"; o segundo proclama-se, jactantemente, como sobranceiro aos próprios deuses. É claro que o destino da monocularidade ímpia é a cegueira fatal, tanto quanto a ciclopeia (que é como se intitula a Rapsódia IX da Odisseia), tem vários refluxos menstruais (ou recorrências fétidas) ao longo da História. Um bastante conhecido e particularmente cavernosos ficou conhecido como "en-ciclope-distas". Nunca enganaram ninguém. Só mesmo quem adora encafuar-se em buracos. Tudo indica que é ciclico. E polifemico... Eu traduzo: Poly-fhemos significa, no grego, muito sábia e lucidamente, "abundante em vozes", "muito propalado", "muito louvado", "de múltiplos rumores". Há alguma relação entre o poly-fhemi e o pro-fhemi? A mesma que entre o polifemo e o profeta. Aliás, acontece até, como está bem documentado, na variada "ciclopeia moderna", quando Polifemo e Profeta se acumulam na mesma pessoa. Exemplos: Locke, Rousseau, Marx, Malthus, Darwin, Husserl, Freud, Lenine, Jabotinsky e um mais recente, singularmente rafeiro: Leo Strauss. Enfim, a lista está longe de ser exaustiva. Actualmente, há mesmo uma tribo que os produz em série.
Falta falar dos dois outros episódios da Odisseia que muito me sensibilizavam: quando Ulisses arma o arco; e quando o cão de Ulissses, Argos, o reconhece e morre logo de seguida. No primeiro caso, era o regozijo mais completo com a vitória e a justa vingança do bem. O herói saía do labirinto, e saía em glória. Aquilo enchia-me de felicidade. Inflava-me também duma força, coragem e razão inauditas. Estava explicado o mundo. Mas o segundo caso, esse, era mais complicado. Muito complicado, mesmo. A ver se consigo explicar isto...
A minha mãe, além de me transportar na barriga, ensinou-me muitas coisas (foi o meu Prometeu, de certa forma): ensinou-me as letras, os números, as estrelas e ensinou-me um outro preceito típico daquelas épocas obscuras: um homem não chora. Muito menos um aprendiz de herói. Portanto, não me restava alternativa. Posto perante aquela tragédia do cão do herói, eu tinha que ir rapidamente esconder-me num sítio secreto e, esse sim, muito obscuro, deveras... para poder cobrir-me de vergonha e... chorar. E chorei.
Só mais tarde, quando li a Odisseia inteira, comprovei que afinal o Herói, o maior de todos, também chorava (enfim, não era português, temos que compreender). E chorava tanto que o mar de Ulisses, como o mar de Jesus, ou o mar dos portugueses, mais que um mar de façanhas, prodígios e glórias, é, abissalmente, um Mar de Lágrimas.
3 comentários:
O episódio do Argos tem uma força enorme, não consigo ler aquelas linhas sem um nó na garganta.
Talvez haja aqui algo muito antigo a funcionar, uma vaga memória dos tempos em que um distante antepassado, algures na estepe da Eurasia, voltou a casa depois de uma caçada, seguido a uma distância prudente por um pequeno lobo. E o lobo foi ficando.
Será a imagem da amizade no seu estado mais puro? Ou a ligação à natureza, antes da “civilização”?
Parece-me importante que o Argos já esteja muito velho, sem se conseguir mexer, provavelmente cego. E ainda assim (ou talvez por isso mesmo), reconhece Ulisses.
Mesmo que a morte acabe por levá-lo, há ali algo que resistiu ao tempo.
Miguel D
Leva: ★ ★ ★ ★ ★
sinto exactamente o mesmo acerca da morte. medo tenho tenho é de não morrer -:) e também estou curiosa para saber o que há para lá , aqui acho que já vi tudo. e nada de novo debaixo do sol. nem tendo vindo Deus à Terra mudamos, o demónio vence sempre aqui, até ao big bum final.
muito belo testemunho.
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