A palavra Lei radica no latino Lex. Os significados de Lex são vários: Moção proposta por magistrado perante o povo; projecto de lei; contrato; pacto; convenção; ordem; obrigação; cláusula; condição. Aparentado a lex, temos também lexis -palavra, expressão -, donde o nosso "léxico".
Por outro lado, lex também se relaciona, servindo-lhe de raiz (ou o inverso, não é pacífico) a lego - delegar ou transmitir a alguém o encargo de fazer alguma coisa; ou delegar. Ainda hoje, no português, nesse preciso sentido, temos o "legado", o "delegado" ou a "delegação". Também, ainda relativos a Lex, através do "lego", no latim havia o "legitimus" (fixado pela lei; legal), donde o nosso "legítimo"; o lector (leitor; aquele que lê), donde o nosso "leitor"; o lectio (escolher; eleição; texto; leitura), donde o nosso "leitura", mas também a nossa "eleição". Finalmente, citemos ainda "legio" - faculdade de escolher; legião - e, de legio, "legionarius" - legionário.
Não é difícil vislumbrar por detrás destas palavras a sociedade de Roma Antiga. Ora, nesta palavra, como em muitas coisas, os romanos aprenderam -e o aprender romano resultou em três fenómenos básicos: copiar, adulterar ou perverter -, com os gregos. Neste caso, no lego, foi quase cópia. Pois na língua de Homero, salvo seja, Legw também significa escolher, juntar, ler, orar, declarar, ordenar. O futuro de Legw é Lexw. E é de Legw que descende o célebre logos - logos, esse, que será de Heraclito, de Platão, que impregnará todo o pensamento grego e se fixará no Novo Testamento, um texto grego, no significado único de "Verbo de Deus". Segundo João: en arkhe hen logos kai ó logos; hen pros ton Theon - No principio estava o Logos; o Logos estava em Deus. Logos, no entanto, tanto pode significar palavra, como máxima, sentença, decisão, promessa, argumento, ordem, notícia, inteligência, razão de uma coisa, juízo, explicação, valor que se dá a uma coisa, entre outros. O cristianismo fixar-se-á no Verbo, calculo, porque pretendeu assim remontar ao "Dizer de Deus" no Génesis. Isto, no entanto, terá consequências. E nem sempre as desejadas. Às vezes, até as opostas ao espírito inicial.
Ora bem, como vimos num postal anterior, a regra pressupõe uma regência, um reino, uma ordem hierarquizada. Como vamos descobrindo aos poucos neste, a lei instaura um léxico. Ou seja, a regra pertence à ordem das coisas, dos costumes, do cosmos; a lei pertence à estrita ordem da palavra. É claro que num certo sentido também poderemos dizer que a lei é uma espécie de regra escrita. Sim, mas nesse caso, na melhor das hipóteses, será sempre uma interpretação estritamente humana das regras, uma leitura mais ou menos fiel do mapa régio.
Neste contexto, uma das diferenças fundamentais entre o universo grego e o universo cristão-romano, sendo ambos duas mundovisões regradas, é que os gregos colocam as próprias regras antes e acima da hierarquia divina, enquanto os cristãos, enquanto reféns do pensamento hebraico, pessoalizam a regra na lei declarada pelo próprio Deus Ditador único. Quer isto dizer que, para o pensamento grego as regras são absolutamente misteriosas, eternas e metacósmicas -mesmo o Deus-Rex (Zeus) tem que cumpri-las; ao passo que para o pensamento cristão Deus Absoluto dita as regras - as regras são as regras estabelecidas por Deus. Deus lega também, decretando (o livro sagrado é na essência um código jurídico), a forma de cumpri-las; a Igreja faz a mediação e advoga. Convém ainda acrescentar que os gregos viam o divino como uma monarquia e ser-lhes-ia, para não dizer repugnante, culturalmente inaceitável concebê-lo como uma tirania solipsa, lexomaníaca e pseudo-abstracta. Para um grego, Ihavé seria monstruoso - uma caótica quimera que amalgamaria numa única figura toda a casta de princípios contraditórios e antagónicos: a força, o poder, a justiça, a verdade, o amor, a morte, a técnica, a natureza criadora, a inteligência, o ódio, etc. Ora, se havia coisa de que os gregos desconfiavam era destes hibridismos, da mistura entre entidades que por princípio não coexistem pacificamente. Para Iahvé teriam, pois, um nome bem mais apropriado, tanto quanto detestado e temido: Caos. Nisso, Hesíodo chega a ser profético e concordante com o Genesis.
O desenlace lógico desta cultura da "lei" séculos adiante? Maquiavel. Se não há regra, a lei do mais forte refina-se no mais forte colocar-se acima e dispensado de quaisquer leis.
Ou dito de outro modo: sem regra, a lei reflecte apenas as fantasias e aleivosias do momento a ferver e de quem nele a dita. Desliga-se da própria justiça e nenhuma virtude consagra. Vale a pena, a este propósito, escutar Aristóteles, na sua Ética:
«Razão houve, pois, para dizer que se faz justo o homem quando executa acções justas, temperado quando executa acções de temperança, e que caso não se pratiquem actos deste género é impossível que alguém chegue alguma vez a ser virtuoso. Porém, o comum das gentes não pratica estas acções e, locupletando-se de vãs palavras, criam mais uma doutrina e imaginam, através deste método, que adquirem uma virtude. Isto é, por assim dizer, o mesmo que fazem os enfermos que escutam muito atentos os médicos, mas que não fazem nada do que estes lhes receitam; e, assim, como uns não podem ter o corpo são cuidando-se dessa maneira, também os outros não terão jamais sã a sua alma, filosofando desse modo.»
A virtude pressupõe um hábito, um costume, um ethos. Isto é, a virtude pressupõe uma regra. Bom é, por regra, agir bem e não apenas agir obrigado por uma lei. Porque em não sendo voluntário, não é livre; e não sendo livre, não é deliberado, não é intencional, logo não pode ser virtuoso. Se atentarmos na nossa sociedade actual, constatamos uma permanente enxurrada de leis, decretos, multas e burocracias de toda a espécie para coagir os cidadãos a determinados comportamentos, inibições ou desregramentos. É, nua e crua, uma sociedade de escravos - de escravos que acreditam estupidamente que a emancipação de toda a regra significa liberdade, quando apenas consolida a submissão inerme à tirania cada vez mais despótica, opressora e totalitária da lei (e de quem a pilota ou teledirige). Uma lei, sublinhe-se e recorde-se, evadida da regra.
Chamam progresso a um regresso: ao Caos.
PS: Sim, eu sei que a Igreja, através de Tomás de Aquino, tentou bravamente arrepiar caminho . Mas suspeito bem, e a história indicia-o, que tarde demais. Os platónicos do costume já avançavam de dentuça arreganhada, patas na matéria livre, cornos nas nuvens matemáticas e a ciência moderna em riste. Ora, para as cacofonias mundanas, o Maestro Cósmico está-se bem nas tintas.
O desenlace lógico desta cultura da "lei" séculos adiante? Maquiavel. Se não há regra, a lei do mais forte refina-se no mais forte colocar-se acima e dispensado de quaisquer leis.
Ou dito de outro modo: sem regra, a lei reflecte apenas as fantasias e aleivosias do momento a ferver e de quem nele a dita. Desliga-se da própria justiça e nenhuma virtude consagra. Vale a pena, a este propósito, escutar Aristóteles, na sua Ética:
«Razão houve, pois, para dizer que se faz justo o homem quando executa acções justas, temperado quando executa acções de temperança, e que caso não se pratiquem actos deste género é impossível que alguém chegue alguma vez a ser virtuoso. Porém, o comum das gentes não pratica estas acções e, locupletando-se de vãs palavras, criam mais uma doutrina e imaginam, através deste método, que adquirem uma virtude. Isto é, por assim dizer, o mesmo que fazem os enfermos que escutam muito atentos os médicos, mas que não fazem nada do que estes lhes receitam; e, assim, como uns não podem ter o corpo são cuidando-se dessa maneira, também os outros não terão jamais sã a sua alma, filosofando desse modo.»
A virtude pressupõe um hábito, um costume, um ethos. Isto é, a virtude pressupõe uma regra. Bom é, por regra, agir bem e não apenas agir obrigado por uma lei. Porque em não sendo voluntário, não é livre; e não sendo livre, não é deliberado, não é intencional, logo não pode ser virtuoso. Se atentarmos na nossa sociedade actual, constatamos uma permanente enxurrada de leis, decretos, multas e burocracias de toda a espécie para coagir os cidadãos a determinados comportamentos, inibições ou desregramentos. É, nua e crua, uma sociedade de escravos - de escravos que acreditam estupidamente que a emancipação de toda a regra significa liberdade, quando apenas consolida a submissão inerme à tirania cada vez mais despótica, opressora e totalitária da lei (e de quem a pilota ou teledirige). Uma lei, sublinhe-se e recorde-se, evadida da regra.
Chamam progresso a um regresso: ao Caos.
PS: Sim, eu sei que a Igreja, através de Tomás de Aquino, tentou bravamente arrepiar caminho . Mas suspeito bem, e a história indicia-o, que tarde demais. Os platónicos do costume já avançavam de dentuça arreganhada, patas na matéria livre, cornos nas nuvens matemáticas e a ciência moderna em riste. Ora, para as cacofonias mundanas, o Maestro Cósmico está-se bem nas tintas.
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