Aqui há dias o Sir Bob Ganzas tinha feito uma mirabolante descoberta: que Angola era governada por malfeitores. Pensei para com os meus botões: "só agora, Sir Bob? E só Angola?..."
Pois bem, ontem, ou anteontem, é indiferente, um grupo de malfeitores reunidos consumou um não menos fulgurante achado: que «850 milhões de pessoas passam fome». Só 850 milhões, ó Sarcoiso? E fome não será um conceito excessivo? Não será antes "dieta rigorosíssima"? Ou "anorexia involuntária"? Ou "jejum obrigatório"? Ou "disfunção alimentar"? Ou "défice nutritivo crónico"? Enfim, há todo um léxico alternativo e suavizante que um certo pudor recomenda e o politicamente correcto baptiza. No melhor dos mundos, atestado de géni0s, cientistas, sacerdotes, pantólogos resfolegantes e pentelhógrafos desenfreados, decretos e petições em barda, eleições e palramentos a cada esquina, quando já temos sondas a esquadrinhar Marte e o Pacheco Pereira embasbacado nelas, não pode decerto haver fome. Há, quando tanto, gente com vontade a mais e comida a menos. Ou excesso de gente aglomerada em locais com pouca comida. E fome, bem vistas as coisas, todos nós temos. Fome de justiça, por exemplo, ainda somos uns quantos; fome da sobremesa alheia, aí, é para cima de bilião e só em Portugal quase todos; fome de fama, fome de poder, fome de bola, fome da desgraça alheia até - como poderá o anão sobressair se não derribar todos os gigantes? Com a agravante de que, para o nanico, qualquer tipo normal já é um gigante. Em resumo, fomes há muitas. E nada prova que a simples fome de pasto para o bandulho seja a mais excruciante de todas elas. Ao menos, o tipo com fome de batatas ou arroz só tem fome: não padece angústias, ganâncias, ansiedades, stresses, vertigens consumistas, invejas sitiantes, bulimias ideológicas, complexos de culpa, crises de identidade, dispepsias profissionais, ditaduras sexuais, etc, etc. O tipo que apenas tem fome já fica feliz com um prato de lentilhas e meio pão saloio. Se acompanhado dum copito, então, entra em êxtase. Nós, em contrapartida, já não ficamos felizes com nada. Porque temos fome de tudo. E quanto mais comemos, quanto mais tragamos e devastamos com o nosso apetite descomunal, insaciável, com a nossa infinita gula avassaladora, mais fome temos, mais vazios e famintos nos sentimos. Um vazio muito mais atroz e desesperante que o vazio do estômago porque é o completo, e cada vez mais desmesurado, vazio da alma. Eles, fome, têm-na; nós, somo-la.
Aliás, é essa a nossa tão ufana e propalada superioridade... Que ostentamos e jactamos por toda a parte e anunciamos já, em delírio, aos alienígenas das galáxias... que exibimos sordidamente, à maneira daqueles mendigos monstros, proxenetas da sua própria aberração. A superioridade da nossa fome, enfim. A nossa fome maior que todas as fomes - mãe, ama, filha e amante de todas elas. Andamos de megafone a apregoar a nossa megafome para quem nos quiser ouvir (para quem tiver esse infortúnio, para quem tiver o azar de participar de tamanho flagelo). Essa insatisfação permanente, que quanto mais se mima, lustra e amamenta, mais frustrada fica, mais insatisfeita se torna. Essa insatisfação parteira de todas as facções e facturas. Esse deserto mental que nem o dilúvio fertiliza.
Nessa medida, os 850 milhões que passam fome são apenas uma tragédia. Atrozes mesmo são aqueles não sei quantos biliões que, empanturrados em vacuidade e ninharia, sepultados sob a própria gordura, vegetam e chafurdam na mais indigente, arenosa e movediça das inanições: a mental. E moral.
Quais pobres supliciados perpétuos que, à semelhança das Danaides no Hades, em vão tentam encher o tonel imenso dos seus apetites com os crivos completos da sua ganância.
O que nos transporta, em forma de epílogo, à ironia dos mitos: é que, mais que relatar-nos o passado, profetizam-nos o futuro.
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