terça-feira, novembro 10, 2009

Civilização helénica

Os senhores tradutores dos evangelhos -que, recordo, foram originalmente escritos em grego e é assim que cultivo o hábito de os ler -, grafaram, regra geral, na terceira bem-aventurança qualquer coisa como:
«Bem-aventurados os mansos porque possuirão a terra».
Depois do Céu ficar prometido aos "pobres de espírito (ou em espírito)", estaria assim a Terra destinada aos "mansos".
Esta palavra "mansidão" atribuída a pessoas soa mal. Mansos são, quando o são, os bichos ou as alimárias, de colo, casa ou carga. Está bem que o homem agora já regrediu a macaco, mas, mesmo assim, "manso" sempre me soou, e soa, com injusteza. Além de áspero, é deselegante.
Dizer, então, "benévolo", "calmo", "sereno", "tranquilo" ou "brando" parece-me descrição muito mais apropriada a uma qualidade do carácter humano.
Até porque o texto no original diz isso mesmo: "makarioi oi praeis". É certo que "praos" também pode significar manso, mas porquê traduzir "manso" e não "sereno", "suave" ou "benévolo" em se referindo a humanos?
E depois "possuirão"... Ainda soa mais áspero que "mansos". Também não é isso que lá está. "Kleronoymhesoysin" - de kleronomia - não significa "possuir", mas "herdar", no sentido de "participar e partilhar herança". Este "possuirão" faz imenso sentido numa bíblia protestante, sobretudo calvinista, mas o escândalo é que acabo de consultar duas Bíblias católicas (e dos Franciscanos/Capuchos, imagine-se).

As palavras de Jesus Cristo, segundo Mateus, no meu modestíssimo entender, andarão mais próximas disto:
«Bem-aventurados (eternamente felizes) os benévolos porque herdarão a Terra».

O que é que isto tem a ver com judaísmo? Rigorosamente nada.

No entanto, há um autor que também recorre a este termo -"praos-, enquanto virtude do carácter humano, definindo-o nos seguintes moldes:
«O homem verdadeiramente sereno sabe não deixar turvar-se nem arrastar pelas paixões, mas indigna-se quando a razão assim o determina e pelo tempo que ela lhe ordene".
Viveu antes de Cristo, alguns séculos, e chamava-se Aristóteles. (Ética a Nicómaco, Livro IV, cap. V)
O Homem sereno também se indigna, ou irrita, mas por justas razões e com justa medida. Tal qual Jesus se indignou diante dos vendilhões do Templo.
Não deve é confundir-se nunca com os coléricos e os rancorosos. Dos quais Aristóteles, como foi sempre seu timbre, nos deixou uma descrição lapidar:
«Os de carácter colérico irritam-se prontamente contra pessoas - e em ocasiões - que o não merecem. É certo que também se apaziguam depressa e é o melhor que fazem. (...) Assim, os coléricos são dotados duma vivacidade excessiva: irritam-se por tudo e contra todos, donde lhes provém o nome que se lhes dá. Os homens rancorosos, todavia, são mais difíceis de governar: a sua irritação dura largo tempo porque sabem dominar os ímpetos do seu coração e não se apaziguam enquanto não tiverem devolvido o mal que lhes tenham feito. Só a vingança aplaca a sua cólera, porque apenas mediante ela o prazer substitui a pena que os devora. Mas enquanto o seu ressentimento não estiver satisfeito, carregam um peso que os oprime, e como não o manifestam às claras, ninguém pode curá-los através da persuasão. É necessário tempo para que a cólera se corroa a si mesma; tais espécimes são os mais insuportáveis dos homens para si próprios e para os seus amigos mais próximos.»

Judaico-cristão é um oximoro. Dos mais gritantes e dignos de indignação.

E agora que, decerto, já despertei a cólera duns e reavivei os rancores de outros, retiro-me. Tranquilamente.

Sem comentários: