quarta-feira, novembro 18, 2009

A Mãe do atrevimento



Dum chorrilho de pérolas de sapiência erudita que a minha amiga Zazie teve a amabilidade de depositar no penúltimo postal, tomei conhecimento de algumas novidades suculentas. Cito apenas as que me parecem mais instrutivas e auspiciosas:
a) Os Gregos Clássicos (para desconfundir com os Bizantinos) não tinham religião;
b) para compensar (magra compensação, convenhamos), apenas tinham filosofia, mas só as elites, porque a ralé era como a nossa, após 900 anos de catolicismo: refocilava, única e exclusivamente, em novelas de fancaria, idas à bruxa, super-heróis, totolotos, lotarias, astrologias, adivinhos e consultas de vísceras avícolas. Hoje em dia, a coisa até está mais reforçada com cinemas, radiografias, ecografias ou toques rectais no próprio connsultante, vampiros, alienígenas, psicopatas geniais, macumbas chiques, ciber-vudus, hip-hopes, jet-setes e metais diversos, nunca esquecendo o cristianismo ronaldo, mas isso só atesta da excelente qualidade da nossa religião. Ao contrário da daqueles supersticiosos ;
c) Platão e Aristóteles, oásis sumptuosos naquele deserto árido, irromperam como certos fungos mais ou menos venenosos: por geração espontânea:
d) Com o Livro de Job é que ninguém consegue avacalhar, porque esse belo episódio altamente moral em que Iahvé envia o seu acólito Satã para moer a paciência a um desgraçado está cheio de mensagens subliminares crocantes e elevados conceitos transcendentais.
Não nos alonguemos.
Como devem calcular, veredictos caturros desta estirpe não são rebatíveis. Concedem-se com um sorriso. Apenas acompanhado dumas breves notas de rodapé.

a) Se os gregos não tinham religião, problema ou vantagem deles. Se era apenas por não serem monoteístas -a Zazie apenas passa alvará a monos - então vai quase tudo de escantilhão pelo ralo da Zazie: gregos, Hindus, persas, egípcios, assírios, germanos, peles-vermelhas, e mesmo os esquimós, lá nos confins gelados, ou os aborígenes dos antípodas duvido que se salvem. Se, outrossim, era por não serem altamente racionais e conceptuais, mas fundadas em mitologias, bem, aí nem comento. Caso para perguntar: De tanto pregar aos ateístas cientoinos, a Zazie foi mordida por um deles?

b) não me custa imaginar a turba daquela época agarrada às novelas e fancarias do tempo (ainda não tinham inventado a moda). A tragédia, um pouco como a nossa ópera, era apenas reservada ao escol altamente erudito (leia-se a Academia e o Lyceu). Mentecaptos e engraçadotes de baixa extracção como Aristófanes entretinham a populaça. As Obras Púplicas, como hoje, estavam entregues a uns trolhas corruptos que erigiam e deslumbravam a plebe com mamarrachos. Jogos Olímpicos, Mistérios não-sei-da-quantas e peregrinações ao Oráculo de Delfos (a Fátima deles) completavam a restante alienação das massas. Como não tinham religião, não era o ópio: era apenas um haxixe de má qualidade. Ou vinho a martelo.

c) Que Platão e Aristóteles brotassem feitos cogumelos, já eu próprio suspeitava. Até porque Platão na brasa ou Aristóteles au champignons soa que é uma delícia. E devem saber ainda melhor. Se forem alucinogéneos, os champignons, tanto melhor. O Homero? Faz-se de conta que não existiu. Que não influiu coisa nenhuma. É só fábulas de fancaria, atesta-nos a Zazie. Como aquela anedota da Rap. XVI da Odisseia, onde balbucia "os homens não devem, segundo o direito divino, premeditar maldades uns contra os outros"; ou aqueloutra na Rapsódia XVII "Os deuses também andam, sob diferentes aspectos, como estrangeiros de terras longínquas, pelas cidades, para observar a violência e a virtude dos homens" (que imbecil, a chamar deuses a anjos); ou o próprio Z... (não posso completar a palavra, porque transporta a Zazie à epilepsia) logo na primeira Rapsódia: "Oh, que exprobração não fazem os homens aos deuses! Dizem que de nós procedem os males, quando só eles, por loucura própria e contra a vontade do destino, são os seus autores..."
Então mas os gajos não eram escravos absolutos do destino e completamente destituídos de Livre Arbítrio?! Este Homero é um conspirador contra a sebenta universitária, além dum mentor de imoralidades. Fez bem Platão, e acolita-o melhor ainda a Zazie, quando, respectivamente, o baniram da polis ultra-pasteurizada e o ignoraram, com olímpico desdém, de toda a religião, ética ou filosofia. Direito divino? Francamente, mas que patranha vem a ser essa!?... E aquele Sófocles, na Antígona, a inventar dramas de conflito fabuloso entre regras eternas e leis mundanas? Outro que tal. Limbo com ele!

d) Quanto a não ser possível avacalhar com o Livro de Job, não deve ser assim tão difícil. Pelo menos para quem consegue avacalhar com a Ilíada e a Odisseia com uma perna às costas e duas palas nas fontes. Refiro-me a mim próprio, naturalmente.

Termino com uma passagem de outro dos autores, além de Homero e de tantos outros, da Ética de Aristóteles:

«Muitos são os assombros do mundo, mas o homem supera-os a todos. (...) Com a sua astúcia chega a domar as feras agrestes das montanhas e subjuga o cavalo de longas crinas e o touro indómito dos montes.
Ele conhece a palavra, o pensamento alado, os costumes urbanos e sabe defender-se dos frios inóspitos, sob o sereno céu, e das fustigantes chuvas. Sagaz e destemido, enfrenta o futuro. Só não pode encontrar salvação contra o Hades, embora saiba curar males sem remédio.
Embora invente sábios e úteis expedientes para além de toda a esperança, caminha necessariamente para o mal ou para o bem. Quando ele respeita as leis da pátria e dos númenes, engrandece a cidade; mas torna-se a sua ruína quando a soberba o empurra para o mal. Não esteja a meu lado, não fale mais comigo quem actua de tal forma.»

- Sófocles, Antígona




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