Autêntica vaca sagrada do nosso tempo, xarope obrigatório das alminhas, a democracia representativa preside ao consenso das igrejinhas e ao credo dos sacerdotes da Opinião.
Em teoria, a democracia representativa, desfila nos mais virtuosos trajes. Em teoria, o socialismo precedeu-a na mesma procissão em anjélicas vestes. Mas na prática, de roldão com as imundícies da realidade e do mundo concreto dos homens (e, sobretudo, dos negócios), o socialismo foi o que se viu e a democracia trabalha num bordel. Entre nós, por exemplo, nos antípodas da exemplaridade teórica e do altar onde lhe beatificam o espantalho, a ribaldaria já atingiu o requinte da maioria da população –e isto em ocasiões sucessivas –, nem se dar ao trabalho de participar nos sufrágios, de tal forma considera insignes os seus “representantes”, e determinante para o seu futuro o valioso acto. Os tais representantes, por seu turno, revelam uma tal estatura moral, que seguem risonhamente, em alegre pandilha, como se nada se passasse. O óbvio é sempre o mais difícil de compreender: na verdade, é com toda a justeza que se apelida a jigajoga de “representativa”, pois não se esmera e refina ela na representação –pelo menos– teatral? Chegar-se-á ao ponto, não duvidem, de noventa por cento da população se abster e, mesmo assim, a festiva representação não esmorecerá. Os convivas continuarão a celebrar, sabe Deus o quê, abraçados aos comensais. Nunca encontrareis figuras mais ufanas de si, mais compenetradas do seu papel, que as marionetes.
Quanto à única repercussão que tudo isso parece ter é de ordem mimética: quanto mais a população se abstém de votar, mais os seus proclamados representantes, por simpatia, se abstêm de governar. Resvala assim, a santa democracia, para um regime sui generis em que nem o povo vota, nem os eleitos governam –uma espécie de variação em sustenido menor de “nem o pai morre, nem a gente almoça”.
Ou então desdém com desdém se paga: “não quero saber daqueles gajos pra nada”, diz o povo, alvejando os políticos; “não quero saber desses gajos pra nada”, respondem os políticos, borrifando o povo.
Vota, portanto, cada vez menos a maioria – maioria, essa, que constitui, em tese, a grande legitimidade da democracia, o seu argumento-mór-, e vota cada vez mais o rol exclusivo de minorias agremiadas sob a forma de partido, lobby, seita – clientelas, enfim. Por esta altura do campeonato, a coisa, com pompa e circunstância cada vez mais fruste e meramente emblemática, já tresanda a mera fantasia, já se confunde com tragicomédia lúgubre e fantasmagórica.
Há quem argumente que as pessoas não votam por falta de civismo, de cultura democrática, de maturidade política etc. São, dessa forma pilatesca ou meramente defecante, uns bárbaros, uns irresponsáveis, uns ígnaros, uma horda pueril e mal-educada e, assim sendo, ainda bem que não votam. Não são dignos do voto santo tão heróicamente resgatado das garras da tirania.
Este argumento solene, naturalmente, é originário da minoria, dos tais partidos, seitas, famílias (e respectivos apaniguados). É um falso argumento, exercício gratuito de conveniência e apenas ajuda à missa fraudolenta que decorre. A generalidade das pessoas que não vota, pura e simplesmente, já não se sente representada, nem se revê minimamente no teatro que é suposto ser celebrado em sua honra. E, por mais distraída ou desinteressada que seja, ou pareça, já percebeu uma evidência que, de tão grosseira, até brada aos céus: A de que a representação decorre e decorrerá sempre à margem do seu voto. Voto esse, regalia sublime, que, entretanto, na retórica é fundamental, mas na realidade é irrelevante.
O cheque é sempre em branco e o otário assina de cruz.
As tiranias e as pseudo-democracias do nosso tempo têm, pois, de comum esse paradoxo simultaneamente diferencial: o de sermos dirigidos, à canzana, por um imbecil ou por uma chusma deles.
Uma vez que a sociedade, ao contrário do processo de constituição idílico que presidiu –em teoria – à sua génese, se tornou num mero esquema de corrupção dos presumíveis entes que a constituem, torna-se quase forçoso que quem quer que se meta a brios de a capitanear, ou se candidate a tão prestigioso posto, se distinga acima do vulgo no infame e execrável mister de viciar, degenerar e devassar os outros.
Em resumo: Numa república de estúpidos, os digníssimos eleitores elegerão invariavelmente os mais estúpidos de entre eles. Ou o mais estúpido de entre os estúpidos notáveis prescindirá dessa formalidade redundante e, em donaire de príncipe, assumirá, como privilégio exclusivo, essa repugnante tarefa.
Só fantasistas próximos do mais desenfreado delírio poderiam imaginar que num regime absoluto de estupidez qualquer êxito ou bom sucesso estará reservado à inteligência. Todo aquele infeliz a quem esta contamine e desgrace, o melhor mesmo que tem a fazer é tentar disfarçar –o mais discretamente possível – tão inoportuna enfermidade.
Começa a ser já uma questão de sobrevivência.
3 comentários:
Eu estaria de acordo contigo em quase tudo não fora a questão do modo como funciona o sistema de voto.
Só não concordo que haja qualquer relação entre abstenção nossa e a deles. E claro que assim vai dar sempre ao mesmo, como tu dizes. Eu não voto por essa razão. Porque sempre me repugnou a ideia de escolher a menor merdice no meio do que considero merdice sabendo que não vai alterar nada.
Claro que se pudesse votar contra em vez de votar a favor até os seriava.
Mas não é só isso, é totalmente irrelevante tu quereres ou não participar, quereres ou não penalizar os que deviam ser corridos à vassourada.
E isto pela mera razão que apanhas com listas à frente. Tens uma cabeça de lista e aí a partir da 3ª ou 4ª já nem sabes quem é o gajo que vem à boleia. E depois nas autarquias é a mesma coisa. Para onde quer que votes tens de ficar com o brinde. E o brinde, meu caro, esses brindes é que mandam, como bem referes!
E mandam no próprio aparelho partidário o que é pior. São as clientelas e essa tropa fandanga das concelhias que comandam os barcos. Quem quer que tenha um pouco de escrúpulos é trucidado pela lógica do aparelho, como dizia, e bem, o João Miranda no Blasfémias.
Por isso nem sei se adianta chatearmo-nos com os novos bárbaros... está tudo feito à medida para os servir...
No fundo, o que eu quero dizer é que mesmo o "sistema democrático -goste-se muito, pouco ou nada dele-, está completamente pervertido: os eleitores, regra geral, já não votam para eleger a "melhor das opções", mas, apenas, a "menos má".
Pois é...mas qual seria a opção boa? COmo se recrutariam "bons" deputados para a nação? Através de primárias, como sugerem alguns? Passando ao lado dos directórios partidários?
Num programa da TV2, intitulado Parlamento ou coisa que o valha, é costume ver os representantes deste sistema parlamentar, a falar, sobre tudo um pouco.
Do BE ao Cds/PP, a matriz lobotomizadora é bem visível: sobre um qualquer assunto, há sempre a perspectiva filtrada pelo prisma que só deixa ver a cor a que se pertence, obnubilando as demais.
COnsoante a verve catalizadora do pensamento dos intervenientes, temos direito ao espectáculo dos sofismas em directo; das reservas mentais; da mentira, até.
Tenho para mim que este fenómeno é uma espécie de esquizofrenia branda, pois atenua os efeitos da razão de qualquer mortal, pondo-os a discorrer sobre os assuntos utilizando sempre a bitola da cartilha que muitas veze se resume ao interesse partidário ou de grupo.
Assim, o que passa por censura aos olhos do comum observador, para eles, depende sempre do lado em que estão: se a censura for governamental, tal é abertamente proclamado pelos opositores; os da situação negam pavlovianamente tal efeito, se assim for do interesse do grupo e nem se preocupam em pensar duas vezes. Basta que seja do interesse do grupo, para que já não exista o que toda a gente vê. E acredito que eles não vêem mesmo! É esse o fenómeno lobotomizador da política de âmbito partidário.
Só assim se compreende, aliás, o modo como o PS- todo o PS, desde o militante de base ao secretário geral- lida com o fenómeno da Casa Pia no que ao deputado correligionário diz respeito.
Uma esquizofrenia, é que o que é!
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