Sua Excelência, o digníssimo Presidente da nossa abananada República, num assomo de rara energia e surpreendente braveza, propõe-se acabar com a censura. Denuncia-a e juramenta-a de morte. Tudo no mesmo dia. Se abananados estávamos, ainda mais abananados ficámos.
Será possível? Uma democracia tão donairosa, tão impoluta, tão pudibunda como a nossa –um regime que qualquer Pangloss céptico não hesitaria em catalogar entre a melhor das democracias possíveis no pior dos mundos imagináveis –, pois, uma maravilha destas, será possível que esteja também ela contaminada, infectada, conspurcada por tão imundo escarépio? Um santuário tão sublime, afinal, diz o próprio Sumo-sacerdote, acoita vampiros e Procustas mutiladores?!...
Como interpretar tão apocaliptica sentença? Devemos correr aos supermercados, como fazem os pobres americanos em véspera de furacão? Impõe-se-nos açambarcar gasolina nas banheiras e produtos essenciais nas garagens? Comprar máscaras? Escavar abrigos subterrâneos? Acolchoar as janelas? Correr às igrejas, em preces de emergência, ou aos filósofos estóicos, em cursos rápidos de resignação? Alguém que nos diga, por amor de Deus! Monte-se um gabinete de crise, uma comissão de acompanhamento das vítimas (que somos e seremos aos milhões, a cair que nem tordos certamente)! Improvisem-se, ao menos, hospitais de campanha, que diabo!... Não se escaqueiram assim as ilusões das pessoas, as concepções idílicas dos cidadãos, o paraíso terreal das hostes, e depois assobia-se para o lado, como se nada fosse! Pelo menos afixem um anjo, nem que seja de barro, e com uma espada de plástico, de sentinela a qualquer retrocesso! Exactamente: À falta de decência, que se salvaguarde um mínimo de dignidade! Atirem-nos no abismo, mas ao menos puxem o autoclismo, irra!...
E, acima de tudo, que compareçam hermeneutas, tradutores, intérpretes! Afinal, que quer dizer Sua Excelência com aquilo –“censura”?
Referir-se-á ao “critério editorial”? O bendito e imaculado “CRITÉRIO EDITORIAL”, por Belenos e Toutatis?!!...
Não posso acreditar. Não quero acreditar. Recuso-me, entrincheiro-me. Nem sob tortura conceberei algum dia tal coisa, tão tremenda abominação. Porque se assim fôr, Sua Excelência que me perdoe a frontalidade, mas blasfema. Blasfema, pragueja, ribomba, com quantos dentes tem, contra o Santíssimo e Altíssimo Mercado. Cospe, despeja, escarra no altar das Leis da Oferta e da Procura, essas Tábuas Santas com que Moisés desceu da montanha. Se o público quer (melhor: exige, reclama, decreta imperiosamente, a toda a hora, de toda a maneira possível e imaginável), novelas e supernovelas –ou sejam, desastres, escândalos, crimes, aberrações, horrores, mentiras, ordinarices, infâmias e quejandos -, que alternativa resta aos profissionais da Comunicação Social, seus vassalos e fornecedores, senão subministrar-lhe os carinhos, substâncias e serviços requeridos?
Vamos imaginar, por hipótese, que não o faziam. Que armavam em vanguardistas peregrinos, amantes da verdade e da decência, paladinos da sensatez e bom gosto. Num instante, ei-los a emitir às moscas e a publicar para o boneco. Num ápice, despenhavam-se as audiências e emagreciam, anoréticas de leitores, as tiragens. Milhares de árvores sacrificavam-se em vão: o papel saía direito do prelo para a lixeira, sem passar pelo olhar guloso da multidão. Quer dizer, sem passar sequer pelo caixote do lixo.
Pois é, em menos de nada faliam jornais e televisões, rebanhos descoroçoados de jornalistas e locutores caíam no desemprego, arrastavam-se pela penúria, perdiam casas e carros, vendiam na feira da ladra os guarda-roupas, cancelavam férias nos trópicos e, de neurónios arquejantes, paranóicos, entupiam os consultórios de psiquiatria, psicologia e similares (ou sejam, bruxas, cartomantes, astrólogos e grandes magos africanos). Entretanto, com tudo isso, lá vinha mais uma sobrecarga para o erário público, já de si tão extenuado: o subsídio de desemprego desta gente não devia ser bagatela nenhuma. A alternativa, não menos sinistra, seria subsidiar os jornais e televisões para que conduzissem campanhas de desintoxicação pública. Pior um pouco, além de imoral, se querem a minha opinião: Lá estava o desgraçado do contribuinte, do público enfim, a pagar por um serviço que lhe causava vómitos, ressacas e sabe-se lá que paroxismos de violência, Deus nos guarde. Por essa ímpia via, para que jornalistas e locutores se aguentassem, mergulhava a economia -toda, e de cabeça - no caos. Porque, sem audiências nem tiragens, não só a desintoxicação fracassava redondamente, como a publicidade ia a pique. Ora, sem conseguir impingir ao pagode as suas porcarias, bugigangas e mixórdias absolutamente supérfluas, desnecessárias, estupidificantes, mas essenciais para a bolsa de negócios, as empresas enfrentavam a ruína e, se não debandassem de urgência para a Cochinchina, entregar-se-iam certamente a estertores e colapsos monumentais. Salvavam-se, por conseguinte, os jornalistas, momentaneamente, mas baqueava tudo o resto, bancos incluídos, porque só de crédito mal parado era uma farturinha, que nem no tempo da mulher da fava rica. Iam cobrar ao Camões, coitaditos dos agiotas. Transformava-se o país numa Guiné. Assim, ainda é uma quase-Angola, mas, insista Sua Excelência no súbito rebate de consciência, e o trambolhão será garantido. Desaba tudo, está bem de ver, num estrondo atroador, e, do “Sem Juízo nenhum”, alcançamos, sem mais preâmbulos nem estações, numa comilonice esbaforida de etapas, o Juízo Final. É mais que certo: Vamos levar com o Céu em cima da cabeça. O que adicionado ao Vazio que cultivamos dentro dela não nos augura uma velhice sossegada.
O que é, então, censurável? Zelar por um critério que dê ao público e aos seus fornecedores profissionais aquilo que todos querem –escândalos e sordidezes àquele, carros, dinheiro, mordomias e viagens a estes; ou irromper aos gritos e remoques contra esta bela harmonia, em ameaças intempestivas contra este equilíbrio natural das coisas?
Sua Excelência, lamentavelmente, confunde o acessório com o essencial. Irrompe em censuras para combater a censura. Acha que empresas que vendem essencialmente publicidade e acessoriamente (des)informam, isto é, cuja função geral de programação é atrair basbaques para a propaganda comercial, são, ou deveriam ser, palcos da notícia séria ou da opinião isenta.
No seu esbracejar tímido, lembra aquele rei distraído que inaugurou a guilhotina: ainda não percebeu que os verdadeiros tribunos do povo, seus representantes efectivos à Convenção, Robespierres e Saint-Justes da nossa época, são os Eduardos Monizes, Balsemões e Amarais todos da paróquia.
Portanto, se Sua Excelência tem amor à reforma, que não será certamente ninharia nenhuma, bem melhor fará se, de cada vez que se descobrir de saco cheio, se puser a reciclar o saco. E se a gambosinagem, pelos vistos, já o enfada, varie: aproveite para enfiar a viola nele. Não vá, em nome duma qualquer liberdade de opinião que, em rigor, a poucos interessa e raramente existe, dar cabo do emprego e ganha pão, no mínimo, de centenas de jornalistas, gente selecta, licenciada, com carros e casas para pagar e férias nas Caraíbas para descomprimir. Já não falando no colégio dos filhos e nos up-grades permanentes que esta nossa sociedade alucinante exige, sob pena de censura, essa sim arrepiante, insidiosa, permanente, de colegas e vizinhos.
(E aqui entre nós, Excelentíssimo: Ficam-lhe bem esses sentimentos, apesar de esporádicos e serôdios. Todavia, acha mesmo, Vª Excª, que fechar a matraca à generalidade dos comentadores e analistas da nossa paróquia seria uma acto de censura? Não o atormentasse essa obstipação nasal crónica, perdoe-me Vossa Alteza a inconfidência, e verificaria como não passaria, na verdade, isso sim, de um acto de higiene).
Pior que reprimir a liberdade de expressão é falsificá-la. Mais infame ainda que a fome é o veneno.
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