Há que propagar aos quatro ventos, sem dó nem piedade, sem trégua nem descanso, até à exaustão, até à naúsea mais deprimente e esviscerante que houver, que a família é um local perigoso; que as criancinhas - esse baluarte derradeiro da imbecilidade por canonizar- estão à mercê de pais, mães, tios avós; que em cada uma destas ramagens da árvore geneológica habita um psicopata, um ogre faminto, à espera da oportunidade para se manifestar, para cevar os maus instintos, as pulsões de morte e os múltiplos projectos de açougue doméstico. Da pedofilia ao homicídio, passando pela violação, venda ilegal, tráfico de órgãos, vampirismo, antropofagia, tudo é possível. Mais que possível, é fatal, é praticamente garantido. A família é o antro das piores bestas, dos mais hediondos monstros. De todos os lados, chusmas de experts, licenciados na pintelhice, mestrados na miudeza, investigadores da caganitância atestam-no. Hordas de jornalistas excitados, histéricos –passe a redundância, num tempo em que “jornalismo” deveio sinónimo de “histerismo” –, proclamam-no todos os dias, antes, durante e após as refeições; ao erguer e ao deitar. Andam pelo país a esquadrinhar vilórias, a espiolhar quintais, à cata de pesadelos guardados em frascos de álcool na dispensa, em caixotes na cave, ou, em postas, no frigorífico.
A mesma televisão que, em avatar de baby-siter, (des)educa os filhos, ou, em traje de padreca, evangeliza os pais, organiza debates e mesas redondas, onde anatomistas e estripadores de toda a ordem, se entregam ao esquartejamento científico dos furúnculos sociais, das tumefacções familiares, e exibem para toda a paróquia a sua perícia na autópsia pedagógica, na hermenêutica da aberração. Através deste passe de mágica, desta alter-egotização milagreira, a mesma televisão que antes injectou a psicopatia ao domicílio, vem agora pôr-se em auto-análise, a debitar sobre o que é que falhou na sua tutoria educativa das massas. Isto é: depois de industriar e incitar o assassino, vem sentar-se na tribuna, feita conselheira do juíz. A conclusão é invariável: certamente aquelas famílias disfuncionais não estavam a ver televisão suficiente, nem a escutar –a sorver com volúpia adequada – na dose requerida e clinicamente prescrita, os incontáveis especialistas e pintelhistas que dela, nos intervalos da publicidade, dos concursos e das telenovelas, e em patrocínio dos melhores sabonetes e shampôs, aspergem as massas de basbaques televisivos com uma imensa e pregnante sapiência e a luz relampejante de faróis da sociedade. Moitas Flores de toda a espécie, com o distinto ar de labregos empertigados, co’a mioleira enfezada subitamente enchida à bomba por arte dum qualquer anabolizante mental de carregar pela boca, arrotam postas de papuda sapiência, posam bonzamente para o écran e declamam banalidades e paroladas capazes de estarrecer, senão debandar mesmo, uma horda compacta de chimpanzés cocantes. Carroceiros dignos de perorar às cavalgaduras da mala-posta, arvoram-se, assim, em pilotos malabaristas do povinho palonço e das famelgas em colóquio. E quando não distribuem atoardas, escrevem telenovelas.
Numa época em que a aberração devém objecto de culto, a ninharia se promove a quintessência, e a tara escaganifobética de qualquer meia-dúzia endinheirada se arroga como amostra prioritária da humanidade, nada disto surpreende. Não mata, é certo. Mas faz pior: desmoraliza.
1 comentário:
De facto, o FLores como argumentista para séries de televisão, deixa quase tudo a desejar.
Nem se percebe muito bem como é que um presumido caminhante do Bem, se dá tão mal com a imaginação! É confrangedor assistir a qualquer uma das suas obras de guionista, começando na inenarrável saga do Alves dos Reis a acabar nesta que agora passou sobre uma irreal Ferreirinha.
COmo é que se pode chegar tão baixo na qualidade exigível, mesmo tendo em conta os standards já patenteados em qualquer telenovela que venha de além-mar, a falar espanhol?!
Acho que é mais um caso de um pelintra intelectual que assentou arraiais entre amigalhaços analfabetos e que o consideram um talento imprescindível.
De tão más, as obras faladas do talentoso FLores, até viram kitsch!
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