sexta-feira, setembro 02, 2022

Um Mundo de Papel...Higiénico

Foi o grande - e mais sagaz - crítico da modernidade. Percebeu e profetizou bem onde conduzia. Decifrou também que há sempre, na essência, um regurgitar nas revoluções e que as novidades raramente passam de coisas antigas com nova farpela. Num trecho muito a propósito destes nossos tempos actuais... E daquilo que, em boa verdade, triunfou no século vinte e alcança paroxismos frenéticos no presente: o homo histrionicus. Ou dito com mais rigor: o histrião a desumanizar-se. Ou seja, de certa forma a abandonar e proscrever até aquilo com que "matou" Deus: a racionalidade.


«Houve épocas em que se acreditou firmemente, cerimoniosamente, piedosamente, que se estava destinado a este ou aquele ofício, a este ou aquele ganha-pão, e em que não se queria reconhecer que o acaso participava na escolha da vocação, em que se negava obstinadamente o aspecto "papel" da profissão e o capricho que o impunha; graças a esta fé, castas, corporações e privilégios profissionais hereditários conseguiram levantar estes monstros sociais que distinguem a Idade Média e nos quais se pode pelo menos louvar uma coisa: a capacidade de duração (porque a duração, nesta terra, é um valor de primeiríssimo plano!)

Mas há épocas de carácter contrário; são as épocas verdadeiramente democráticas em que esta fé se perde cada vez mais e em que domina certa crença temerária num ponto de vista oposto, a crença dos Atenienses que se observa pela primeira vez na época de Péricles,  a crença ianque de hoje, que se torna cada vez mais crença europeia; cada um está então convencido de poder fazer quase tudo, de estar à altura de qualquer papel; cada um se ensaia, se experimenta, se improvisa, se volta a ensaiar, tomando prazer nisso, cessa toda a natureza e torna-se artificial... Os Gregos, uma vez lançados neste caminho da crença no papel - crença de "artistas", se quisermos -, passaram por todas as etapas de uma transformação singular que não é digna de admiração de maneira nenhuma: tornaram-se realmente actores; e, actores, fascinaram e conquistaram o mundo, incluindo finalmente até a "conquistadora do mundo inteiro" (porque foi o gracculus histrio que fez a conquista de Roma, e não a cultura helénica, como dizem os inocentes). Ora o que me assusta, o que se pode já ver com os nossos olhos, mesmo que se tenha pouca vontade disso, é que estamos a tomar, nós, os modernos, o mesmo caminho; e sempre que o homem começa a descobrir em que medida desempenha um papel, em que medidas poder ser comediante, torna-se de facto comediante... Vê-se surgir nova flora e nova fauna humana que não poderiam crescer em épocas mais rigorosas e mais acanhadas - ou, pelo menos, ficariam na sombra, suspeitas de desonrar; são as épocas mais interessantes e as mais loucas da história, aquelas em que os "comediantes" de todas as qualidades são os verdadeiros senhores. Prejudicam por isso mesmo, cada vez mais severamente, e acabam por  tornar impossível uma outra categoria de pessoas, nomeadamente os "grandes construtores"; a força de construir estiola-se; anemiza-se a coragem que permitia forjar projectos a longo prazo; os génios organizadores começam a faltar; quem ousará ainda atacar trabalhos cujo acabamento exigiria que se pudesse contar com prazos de milhares de anos? Não se vê desaparecer a lei fundamental que permitiria calcular assim, prometer, antecipar, sacrificar o futuro aos seus planos e segundo o qual o homem não tem valor, ou sentido, a não ser na medida em que é uma pedra de um imenso edifício; o que lhe exige em primeiro lugar que seja sólido , que seja "pedra"... E acima de tudo que não seja comediante! 

Resumindo - ai de mim, não se calará isto senão por demasiado tempo! - o que já não se constrói, o que já não se pode construir, é uma sociedade, no sentido que o termo possuía antigamente; para construir semelhante edifício falta tudo, e materiais em primeiro lugar. Deixámos de ser pedra aparelhada: é uma verdade que já é tempo de enunciar! Parece-me indiferente para o momento que a espécie de homens mais míope - a mais honesta talvez também, e em todo o caso a mais barulhenta que existe nos nossos dias -, parece-me indiferente, dizia, que os cavalheiros socialistas acreditem, esperem, sonhem, escrevam e gritem - e gritem sobretudo - a opinião quase contrária; já se lê a sua divisa futura em todas as mesas e em todas as paredes: "Sociedade Livre". Sociedade Livre? Perfeitamente! Mas sabem, senhores, como é que isso se constrói? Em mármore de papel! O famoso papel-mármore! E ainda, quando digo papel...»

- Friedrich Nietzsche, in "A Gaia Ciência"

3 comentários:

Anónimo disse...

Bela passagem.
Comecei a ler Nietzsche há pouco, nem ao nível de iniciado ouso chegar.
Do que tenho lido e da passagem que o Caro Draco transcreve surge-me uma interpretação que é a ligação entre o histrionismo e o nihilismo.
No "A genealogia da moral", começa-se por analisar o início dos conceitos de justiça, de consciência e do dever desde os nossos tempos primatas. E como as ideias de moralidade são racionalizações tardias de instintos muito mais básicos: a agressão, a caça, o medo, etc., mecanismos constitutivos dos humanos e que já estavam presentes quando vivíamos nas árvores. Terá havido um dia em que ainda acordámos a pender para o instinto e nos deitámos a pender para a moral?
Se somos átomos e sinapses, o que fazer ao conceito do livro arbítrio, sem o qual qualquer ideia de responsabilidade e justiça fica em caua? Com que fundamento se há de punir alguém que não é o autor de si próprio e não tem controlo sobre os seus processos bio-químicos?
O confronto com esta questão é o que Nietzsche chama a maior crise da história da humanidade e para a qual não se encontra resposta óbvia. O terror ante este problema surge da incapacidade de lhe dar uma resposta que evite a auto-destruição .
Uma possível reacção perante este abismo é a gritaria.

Miguel D

dragão disse...

«Comecei a ler Nietzsche há pouco, nem ao nível de iniciado ouso chegar.»

Eu já o li todo, nalguns casos muitas vezes, e ainda continuo nesse estágio. :O)


Embora considere o Nietzsche tanto um poeta como um filósofo, o que lhe confere uma margem de manobra muito grande. Até para lhe desculpar aqueles momentos mais "visionários", digamos assim. Mas é uma das grandes notas de rodapé.

Quanto à sua interpretação, ó caro Miguel, parece-me bastante apropriada.

PS: Do pouco que sei, aceite um conselho: para entrar no Nietzshe, passe primeiro pelo Schopenhauer. Tem duas vantagens: serve como chave de acesso e também com antídoto para certas cavalgadas nietzscheanas que, embora sempre belas, nem sempre justas. Há muito fogo de artifício. Acho que ele próprio se tomava com uma pedra de sal. E sem nunca esquecer que, tanto quanto superar o nihilismo, o voluntarismo nietzscheano, demanda ultrapassar o pessimismo de Schopenhauer. O "Grande Sim" à Vida. Para a cruz, sem medo! Faz lembrar Alguém...

Anónimo disse...

Muito obrigado pela recomendação, Caro Draco! Vou investigar

Miguel D