Só depois de fermentar uns anos sobre Soljenitsyne (eu sou assim, fico a fermentar, como os alambiques, parece até que durmo, mas não: digiro), especialmente aquele "A Rússia sob a Avalanche", é que eu acho que comecei a decifrar o nevoeiro, a ver para lá do absurdo. Estou, pois, em crer que a palavra e o momento chaves da transformação são, respectivamente, Stalin e a 2ª Grande Guerra. O primeiro, porque liquidou bolcheviques e trotskistas (e ainda, de bónus, e passe a redundância dos anteriores, grande parte da súcia torcionária judaica); a segunda porque restaurou o patriotismo e o "amor à Mãe Rússia". Emerge dela uma devoção, quase místico-religiosa, que, num certo sentido, transcende o estrito ateísmo comunista. Quer dizer, a União Soviética é, doravante, a Rússia Vermelha - vermelha do sangue do seu martírio, dos seus heróis, da sua - permitam-me o termo -, "humanização". Já não é apenas uma estrita manipulação/usurpação ideológica, uma abstração utópica, uma revolução do cuspo; não, assentou na terra - a terra mãe, origem, matriz -, e recuperou parte das suas raízes. Não é, até, de todo impróprio quando se diz Stalin, o Czar Vermelho.
Suspeito bem que as derrotas humanizam, porque nos devolvem, aos homens e povos, ao chão; tal qual as vitórias ensoberbecem e, nessa medida, endemoninham, porque nos atiram à conquista dos céus. As terríveis derrotas iniciais dos soviéticos às armas dos alemães do III Reich fizeram deles russos outra vez. Só a Rússia, a gigantesca e mística Rússia, teria força para derrotar o melhor e mais brutal exército do Século XX. Sem ela, a União Soviética teria sido varrida, como, de resto, foi, enquanto a Rússia, telúrica, antiga, profunda, não se levantou. Não foram os soviéticos que arrasaram os alemães, foram os russos. Arrepia-me, pensar nisto.
Temos o hábito de conotar império colonial com império marítimo. Porque na história fomos um império desses, em despique contra rivais do mesmo jaez: holandeses, britânicos, franceses... Escapa-nos, assim, quase por automatismo atávico, a ideia de um império colonial terrestre. Não dispersão, mas contiguidade; não mar, mas fronteira. Todavia, é nisso que se transforma a União Soviética com Stalin no pós-guerra: num império colonial Russo. As repúblicas da URSS são colónias da Rússia. E todas, ou quase todas, com comunidades de colonos russos nelas implantadas. E mais ou menos numerosas. Que se vão introduzindo e ampliando ao longo dos anos. Por motivações e fenomenologias várias. Acerca disso, Soljenitsyne é eloquente:
A implosão da União Soviética é, assim, muito parecida com a implosão do Império Português: desaba por dentro, sob vapor e enlevo externo, e acarreta consigo uma catástrofe total, um cataclismo que tudo desmorona e aniquila. Não apenas na matéria, mas também no espírito. O caos, a delapidação e a pilhagem que lhe sucedem vêm mascarados sob o manto edulcorado duma abstração entorpecente: democracia. O beijo da aranha.
E há uma outra tragédia humana que decorre do descalabro geral: os colonos russos experimentam a mesma sensação dos colonos portugueses. A desorientação, o desespero e o abandono. Soljenitsyne queixa-se amargamente disso.
A herança de Putin é, pois, pesada e complexa. E resulta duma segunda "humanização" da Rússia, extraída das terríveis debacles e humilhações do pós-império soviético. A Federação, todavia, já não é o Império, mas retoma dele as raízes, a postura e a bandeira. E não pretende renegar, estou em crer, a terra e o povo que, historicamente, são os seus. Até porque a língua russa também é, justamente, a pátria deles.
Nesta pesada herança, oriunda do comunismo sobretudo, abundam problemas, atropelos, desmazelos e injustiças grosseiras como as da Pseudo-Ucrânia. Mas sobre isso a alongar-nos-emos detalhadamente num próximo postal.
14 comentários:
Sim, também cheguei a conclusão parecida, não depois do Sol. mas por conversa com eles, nos blogues por aí.
Havia um comunismo para consumo interno e outro externo. Quase sem excepção, os comunas estrangeiros através dos quais eles exerciam a política externa, seriam fuzilados lá se fossem russos.
Essa parte eles também não entendem, obviamente, porque só tiveram do de consumo interno, do da Grande Guerra Patriótica, depois do Estaline limpar a casa.
De resto, sem dúvida que a guerra foi a grande transformação. Ninguém assalta o inferno em nome dos amanhãs que cantam abstractamente. É preciso coisas concretas: família, terra, sangue, pátria.
De resto, enfim, também nunca gostei muito e continuo apreensivo.
São chauvinistas como o diabo e esse mito da Guerra Patriótica assenta na ideia que o mundo em geral e a Europa em particular estão sempre - e sempre estiveram - a congeminar a extinção deles. O que, enfim, por mais verdade que possa ser em certos momentos, incluindo o presente, convenhamos que exagera um pouco a importância deles...
Aliás, essa tendência parece típica dos eslavos.
Ataviam sempre o sectarismo intra-étnico deles com as roupagens de magnos conflitos mundiais. A história dos católicos/ortodoxos é semelhante. Também desconhecia e constatei há uns anos o nível de sanha que anda nisso. Os tipos positivamente odeiam o Vaticano e parecem convencidos que é o papa em pessoa que incita os polacos contra o resto. E não duvido que os polacos tenham história semelhante de sinal contrário.
Todavia, escusavam de exagerar nesses receios, apesar de em boa parte legitimados pela História. Os tipos são qualquer coisa a raiar o indestrutível.
Militarmente, têm lacunas nalgumas áreas (onde, não obstante, têm vindo a melhorar). Mas compensam com uma coisa que é de longe a melhor do mundo: a Artilharia. Estão a triturar os ucranicoisos no Leste. Lenta e calmamente. Com requintes. E estão de luvas e com um corpo expedicionário ridiculamente pequeno para a tarefa. E de segunda, terceira linha. Mas, basicamente, penso eu, andam em testes. Sem pressa.
Indestrutível, não sei. Os alemães não destruiram poucos...
Mas eles eram muitos e tinham muito para onde recuar. O sustento material americano, que eles agora gostam de menosprezar, não foi nada pouco e foi decisivo, parece-me.
Seja como for, isso agora pouco importa.
Do que venho lendo, para além de artilharia, também dominam a guerra electrónica. Há um vídeo de uma palestra em West Point, com interesse. Vou ver se acho.
Os ucranianos não estão em posição invejável, não..
Aqui
https://www.youtube.com/watch?v=_CMby_WPjk4&t=1234s
A partir dos 20 min, ele começa a falar dos aspectos técnicos.
Pah, eu cá se estivesse a levar com cavaleiros teutónicos há seis ou sete séculos também começava a desconfiar de qualquer coisa ...
Como dizia o outro, até os paranóicos têm inimigos.
Quanto ao conflito da Ucrânia, a verdade é que não tenho grande opinião, para além de esperar que as pessoas sejam poupadas.
O que vejo é os efeitos em Portugal e na Europa: desindustrialização, dependência dos gringos, empobrecimento.
Li há uns tempos um artigo sobre a geoestratégia do início do séc. XX, pré-1933. A grande ameaça para os Anglos era a concertação da Alemanha e da Rússía. Talvez, nesse aspecto, as coisas não tenham mudado muito...
Miguel D
«A grande ameaça para os Anglos era a concertação da Alemanha e da Rússía. Talvez, nesse aspecto, as coisas não tenham mudado muito...»
É a paranóia deles. A Eurásia que os assusta. Tinham que fazer tudo para evitar que o que nord stream 2 abrisse. Obrigaram os russos a intervir só para boicotar isso. Só que, parece-me, a emenda foi pior que o soneto: empurraram a Rússia para a China (sendo que, simultaneamente, os russos têm muito boas relações com a ÍNdia). No lugar dos anglos, agora sim, deviam começar a assustar-se.
Muja, eles recuam sempre, começam quase sempre a perder... O pior é depois. :O)
Aquele recuo em Kiev foi uma obra prima de decepção. Está na doutrina deles. E o mais engraçado é que tantos especialistas de volta da pentelheira e nenhum viu o óbvio. Pior: os estrategas da Nato que comandam os ucranicoisos foi a mesma coisa: engoliram o barrete com orelhas e tudo. Quando se chega ao descalabro de achar que as guerras se ganham com propaganda...e, mais grave ainda, quando estas abéculas começam a fumar da própria droga que vendem, então sabemos que a coisa não desceu ao nível da mediocridade confrangedora: desabou para o submundo do péssimo.
«eu cá se estivesse a levar com cavaleiros teutónicos há seis ou sete séculos também começava a desconfiar de qualquer coisa»
Só que não há cavaleiros teutónicos em Espanha, por exemplo. E o Vladimir Vladimirovich ainda há pouco tempo condecorou postumamente uns que lá andaram a combater contra o fachismo.
E na grande guerra dita patriótica, também convém não partir do princípio que aquelas tropas todas que os alemães capturaram no inicio estavam a preparar-se para vir ajudar as velhinhas da Europa...
Quem vai à guerra dá e leva, e eles dão que se farta. Mas julgo que choram demasiado quanto ao levar. Aliás, fazem lembrar outros que são especialistas nisso e aos quais andam agora a disputar o lugar de presidente do comité de vítimas do mal absoluto.
- Eu é que sou a maior vítima!
- Não! Eu é que sou a maior vítima!
Pois é. Faz todo o sentido. Naquela terra é o melhor a fazer.
Mas sabe outros parecidos? Os ingleses. Também começam sempre assim, parece que andam bêbedos, o que nunca anda muito longe da realidade, mas pronto, metaforicamente.
Mas no fim, no finzinho, são sempre eles a segurar a faca pelo cabo e outro qualquer a segurar a lâmina com a ilharga.
Tenho cá uma impressão que é o que ainda há-de suceder aos gringos...
«desabou para o submundo do péssimo»
Nem sei o que dizer. Tenho andado a matutar nisto e a única conclusão que chego é que literalmente mais valia ter macacos a mandar nisto tudo.
Vem-me assim uma imagem de macacada no meio de edifícios clássicos, romanos por exemplo. Mas novos, ainda não arruinados. Ou, melhor dizendo, ainda não materialmente arruinados.
Por falar nisso, quando vem um postal de filosofia? Andei a dar nisso, nestes últimos anos. Eheheh
O video é muito educativo. Há todo um novo patamar electrónico na guerra, que os russos não parecem descurar. Também ajuda ter uma engenharia de ponta.
«Andei a dar nisso, nestes últimos anos.»
Ora aí está, diria eu, uma boa forma de perder tempo. Porque perdê-lo, perdemos todos a cada minuto, assim, ao menos, que seja por uma boa causa.
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