sábado, junho 02, 2012

A Odisseia anual Caguincheana (r)




De vez em quando –em rigor, uma vez em cada ano – o Caguinchas vai de visita a casa. A mulher espera-o, de emboscada, com contas sempre antigas e facturas acumuladas por receber. Vitupera-o, discutem, andam à porrada, partem coisas, dão gritos, e depois, seja porque aquilo os excita, seja porque ela cai exausta, com a combinação em desalinho e as pernas à mostra, ele –indecentemente- aproveita, e, com ganas de seiscentos diabos, faz-lhe mais um filho. Ela, nesse entretanto, por via de electrocussão súbita ou de compressão dalgum botão mais sensível, de exausta transfere-se a possessa: arranha-o, morde-o, estrangula-o, enrosca-se feita cobra constrictora, e fá-lo, desconfiamo-lo bem, passar um bom bocado. Finalmente, por alturas do clímax com que a natureza brinda as suas favoritas, ela grita de novo, uiva aos quatro ventos e respectivas brisas, num estertor ribombante de plantar benzedura em todas as beatas das redondezas e atrair à cusca todos os putos do bairro, enquanto ele, ou por mania inveterada de sincronismos, ou por simpatia fornicabunda, em nada se coíbe de acompanhá-la aos urros, aos brados de incitamento dignos duma tauromaquia descabelada e pornofazeja. Diz, quem o escutou, e sou testemunha que se propaga a grandes distâncias, que é um espectáculo digno de se ouvir. A coisa chega a ter contornos de rapsódia animal. Até que -contam os mitos da vizinhança- por imutável desenlace, um suspiro profundo, um arquejo cavernoso, derradeiro, encerra as hostilidades amorosas e ela, num fulminante êxtase, cai para o lado, desfalecida e saciada para mais 365 dias e outras tantas noites. Facto providencial, esse, pausa deveras oportuna, que ele, manquejante, mordido, escoriado, em perfeito desalinho, ainda meio a pingar e a sacudir-se, aproveita para se pôr ao fresco, dar de frosques, tal qual, aliás, faz e recomenda, entre outros, o pequeno macho da tarântula, por hora de idênticos apertos e desapertos. Eu, no lugar de ambos, o Caguinchas e o "tarântulo", se calhar fazia o mesmo.
Resta acrescentar que no fim da retirada –convenhamos, estratégica –, fica invariavelmente a tasca, aliás ciber-tasca. Ano após ano, é aí, nessa praia de abrigo, que um Caguinchas invariavelmente esfarrapado, náufrago urbano e maltratado da ilha dos amores, vem desembarcar ulissianamente. Feito num Cristo - mas um Cristo ufano e refastelado, triunfador dum Calvário de delícias -, ofusca-nos, então, a todos com o brilho de sóis ignotos que traz no olhar. Um explorador amazónico acabado de regressar do Eldorado, após excursão alucinante por selvas e pantanais, evadido à tangente de feras bravias e tribos antropófagas, não se apresentaria mais condecorado.
Nessas alturas peregrinas, de raro esplendor homérico, uma vez sem exemplo, confesso: temos inveja... Todos! Mordemos a beiça e cobiçamos-lhe as botas. Ao filho da puta do Caguinchas, imagine-se! Que, nesse dia, não há como negá-lo, é o maior. Logo que entre, arrastando-se glorioso, lacerado, a tasca cala-se, estatui-se, em respeitosa veneração. Um silêncio sepulcral, reverente, em jeito de grinalda, é lançado aos pés do arqui-herói que regressa, que desfila, que ostenta, com empáfia, com pompa e circunstância –como manda a ordem, as marcas da sua bravura.
E o sacana sabe disso, o grandessíssimo cabrão, salvo seja!... Oportunista miserável, desfrutador do momento, aproveita a ocasião e responde às trombas em continência, desembainhando ao alto alardes do estilo:
"Estão a ver, ó pichas moles? Macho é assim!..."
A malta engole e cala. O homem, macho de facto incontestável, vem coberto de golpes, mordido e ensanguentado, lá das bandas do Eldorado, e a coroar cada ferida –sendo elas, ainda por cima, mil e muitas – traz reverberações de ouro, fulgores de rubi, irradiações de diamante. Até nos poderia escarrar em cima, que a pandilha acharia justo. Guardaríamos a lostra num frasco, a que prestaríamos culto pagão, devoções de relíquia, tal qual aqueles objectos preciosos, camisolas ou pedaços de muro, que certos maduros coleccionam a título do "eu estive lá". A custo, devo dizê-lo, contemo-nos de não cair de joelhos, prostrados, em adoração.
Entretanto, exagerando nos combalimentos, o Caguinchas senta-se. Como um leão ferido –ou melhor, como um domador de leões após um motim raivoso destes –, põe-se a lamber as feridas, dá-se ares de heróico estoicismo. Munido de aguardente velha –que toda a malta faz questão de lhe oferecer -, entrega-se aos curativos. Ora entorna pela goela (para anestesiar as terríveis dores, conforme explica), ora entorna pelas chagas rubras, a banhar os sulcos épicos que lhe dignificam, a cumes olímpicos, a carne. Rasgou a camisa e ensaia garrotes, pensos ad-hoc. Uma dentada mais sincera, que lhe devasta o ombro direito, deslumbra grande parte de plateia. Os restantes embasbacam, num pasmo idólatra, com os rasgões unguliformes que lhe exaltam as costas.
A certa altura, tomado dos humores caprichosos próprios dos seres predestinados, berra:
-"Tragam-me álcool puro, foda-se! Isto com a aguardente não se aguenta -ainda me gangrenam os tomates! Esse cabrão do Armindo deve tê-la baptizado, diluído, o filho da puta!..."
O citado Armindo, dono da taberna, baixa os olhos e esconde-se atrás da máquina de café, aterrado, temendo o linchamento pelos fiéis; enquanto a mulher, de emergência, larga os tachos e corre a satisfazer o decreto do super-herói. O Caguinchas, sem mais delongas, reforça a anestesia, entornando o álcool puro pela goela e a aguardente velha sobre as feridas.
-"Ah, assim está melhor! – exclama.- As piores hemorragias são as internas!...Já me estava a esvair!..."
É nesta altura que, aos olhos extasiados da maralha, ascende de superhomem a deus.
Ao mesmo tempo, como se tamanhos prodígios não bastassem, dá-se ainda, o finório, ao requinte de ir polvilhando de desabafos sublimes o pudim já de si excelso da situação. Fá-lo como quem conciliabula com os próprios botões, mas até porque estes primam em larga medida pela ausência, fruto da refrega épica, murmura alto o suficiente para que todo o auditório oiça:
-"Irra, esta mulher lembra-me os tempos de África. Quando se vem, um raio me parta se não é a minha velha G3 em figura de gente: nada de tiro-a-tiro, sempre em posição de rajada!..."
Mas a pérola-mor eclode quando porventura alguém, eu por exemplo, cai na asneira de lhe perguntar pela saúde da ferocíssima consorte...
-"Então, Caguinchas, lá vens da visita anual...E que tal está a Anabela?..."
-"Anabela?!! –ruge ele. – Baptizaram-na Anabela, as bestas dos padrinhos. Mas mais valia terem-na baptizado Anaconda!..."

Pois é, meus caros: Há heróis assim. A nós, vulgares mortais, cumpre-nos velá-los, admirá-los enquanto vivem. Até porque, sabemo-lo bem, um dia não regressarão.

1 comentário:

S. disse...

Ahahahahh

Brilhante, como sempre!
(e em PORTUGUÊS, para variar)

Entretanto, o fim aproxima-se!
O ciclo completa-se e volta ao ponto de origem:

http://uk.reuters.com/article/2012/06/01/uk-greece-power-idUKBRE8500QA20120601


imagino os esgares de horror dos usurários (e seus serviçais).

:)