domingo, junho 03, 2012

Tutela, coleira e trela


Tenho um grande pecado a confessar e quero fazê-lo aqui, publicamente, para que o remorso seja sincero: experimento a maior dificuldade, além duma montanha de embaraço, em acreditar piamente que o mundo, a civilização e a humanidade racional e esclarecida principiaram no radioso dia 14 de Julho de 1789. Como atenuante, se é que umá aberração destas tem atenuante possível, asseguro que estou em tratamento e tudo faço para ultrapassar esta tremendo e obstinado desarranjo. Os peritos não concordam com os especialistas - o médico diz que é uma alergia incurável, o padre assegura que é uma heresia crónica adquirida, o vidente desconfia que é encosto e o psicanalista jura a pés juntos e por alma da mãezinha dele tratar-se de um Complexo boomerang cíclico (isto é, um complexo que vai e volta e quanto mais se manda embora, mais ele se apresenta à nossa porta) -, mas eu não desistirei. Também sou gente e filho de Deus, pelo que também tenho direito a experimentar certo tipo de êxtases, transportes e deslumbramentos. Falta-me, é certo, a capacidade, entrava-me esta não sei quê nas meninges, tarda em germinar-me a penugem nas costas, mas hei-de lá chegar. Nem que me esfarrape todo. À cambalhota ou ao pé coxinho, senão nesta encarnação numa das próximas vinte, hei-de conseguir. Custe o que custar! A delícia suplementar, penada e acrescida que não experimentarei então!... A delícia, o deleite, o regalo...e a regueifa!
Uma vez lá, alcançado esse estádio clarividente e luminoso, poderei então arvorar-me desses trajes solenes, carnavalescos, desses arreios dourados, com franjas, berloques e guizos, vulgarmente denominados "esquerda" e "direita", e, devidamente paramentado num deles (meu Deus, até estremeço só de pensar nessa volúpia!...), lançar-me, que nem gato ao bofe, nesses debates periódicos em redor da doutrina ou da cartilha, da sebenta ou do manual, do shampô preguiçoso ou do pentelho renitente e sequestrador de horizontes.
Agora, peço desculpa, mas tenho que ir escrever, de correctivo, mais cem vezes no quadro: "14 de Julho de 1789". A ver se me entra na cachimónia. Depois, em reforço terapêutico, tratarei de imaginar, pela enésima vez, o caos, a caverna, a balbúrdia e a selvajaria que não era, em todas aquelas dezenas de séculos anteriores - através dos quais a pobre humanidade penou e padeceu horrores -, sem a bênção da tutela política, a redoma da coleira económica e a vacina da trela mental da puta da burguesia. Eu disse puta?! Ora porra, outra recaída!...

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