«Um povo, de resto, sobretudo se se sentiu oprimido, pode a princípio simpatizar com o movimento liberalista; mas, tarde ou cedo, de desconfiar dele, passa a odiá-lo. O caso é simples. Ou o liberalismo segue o seu caminho lógico e justo, ou não o segue. Se o segue, entra, mais tarde ou mais cedo, em conflito com privilégios que a ele, povo, tocam já de perto; porque privilégios todos os têm, reais ou esperados. Se o não segue, que é o que em geral acontece - dada a impossibilidade radical da operação do liberalismo e os atritos que quotidianamente encontra ao tentar existir - vai o liberalismo gradualmente desviando-se do seu primitivo intuito, porventura sincero, e torna-se uma mera arma de espoliação para os políticos sem escrúpulos, modo-de-viver dos Lloy Georges e dos Clemenceaux da charlatanice política internacional. Mero implemento de ambiciosos, quando não positivamente de ladrões, o liberalismo acaba por despertar as iras do povo, quando o caso se não dê de no povo, por decadente, já não haver a possibilidade sã da ira legítima.
O caso é, pois, que, sendo assim anti-egoísta, o liberalismo é radicalmente anti-popular. Para se ser "liberal" é preciso ser-se inimigo do povo, não ter contacto nenhum com a alma popular, nem a noção das noções instintivas que lhe são naturais e queridas. Teoria, de resto, originada por emissários da aristocracia inglesa, no seu conflito com a velha monarquia; espalhada, depois, por homens de letras franceses, mais como arma contra a Igreja que contra o ancien régime, o liberalismo ainda hoje se conserva fiel à sua origem extra-popular. Hoje, porém, são os transviados do povo quem teoriza - os infelizes que saíram do povo e, perdido o contacto com ele e com os seus instintos naturais, não subiram, porém, a nenhuma das aristocracias que o esforço pode conquistar, eternos intermédios da vida social, sem cultura verdadeira, sem posição conquistada, sem valor interna ou externamente definido. Escravos de todas as invejas e de todas as falências, o seu subconsciente indisciplinado espontaneamente os leva a colaborar em quanto seja obra de dissolução social, traidores naturais a tudo, excepto à sua própria incompetência para tudo. Tão triste e débil época é a nossa que as próprias teorias falsas desceram de categoria nas pessoas dos seus sequazes! Feito, assim, por quem ou não é povo, ou já não sabe sentir como povo, que admira que este sistema venha eivado de todos os vícios anti-instintivistas, de todas as raivas anti-naturais?»
- Fernando Pessoa, "Páginas de Sociologia Política"
Quase um século depois, a maleita, como está bem à vista, agravou-se. Do estertor, saltou-se para a putrefacção acelerada. Dizer que, mais que um problema de partido, nos aflige e arruína um problema de regime, sendo verdade, não diagnostica, todavia, com exactidão a doença. Na realidade, a Portugal avassalam-no, em perfeito tandem só na aparência paradoxal, uma ausência e uma abundância - a ausência de povo digno desse nome e a abundância copiosa de "liberais", ou seja, na definição rigorosa de Pessoa, "de traidores naturais a tudo, excepto à sua própria incompetência para tudo". Auto-proclamam-se, com imensa prosápia xaroposa, "elites". E vão dos Sócrates eleitos até a generalidade dos socratizados eleitores, passando pela grande maioria dos cripto-neo-pós-sócrates concorrentes.
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