terça-feira, julho 18, 2006

Leviatã e o Paraíso

O que Israel está a fazer no Líbano é terrorismo. Terrorismo de Estado, mas terrorismo. Em forma de contra-terrorismo, mas terrorismo. Não é o fim do mundo nem é uma originalidade especial. O que os americanos e os ingleses estão a fazer no Iraque e no Afeganistão é terrorismo da mesma qualidade, só que a uma escala consideravelmente superior, de espaço e tempo. E, consequentemente, de hipocrisia, de infâmia, de carnificina.
Mas não se pense que esta maravilha do "terrorismo de Estado" é uma exclusividade deste cluster imperial hodierno. Os Assírios, se não me falha a memória, foram os primeiros peritos em "terrorismo de Estado": Não só conquistavam as cidades, como, por doutrina de vida, faziam empalar prisioneiros, chacinar mulheres, crianças e animais domésticos. Um serviço completo, pois claro. Porque idolatravam deuses cruéis e sanguinários? Porque eram uns selvagens idólatras e impiedosos? Leiam o Livro de Josué (logo a seguir ao Deuterónimo, na Biblia Sagrada) e constatareis que os Hebreus fizeram exactamente o mesmo, em nome de Ihavé (futuro Deus-Pai), aquando da primeira constituição de Israel.
O "terrorismo de Estado" conheceu posteriormente dias gloriosos sob as flâmulas e estandartes do Império Romano. De tal ordem que este viria a tornar-se uma espécie de paradigma para todos os exercícios ulteriores - de ambos: império e terror. O Império Britânico, cujo gestação começa na república puritana de Cromwell, usou e abusou do Terror de Estado. Desde a Irlanda à Guerra do Ópio, passando pelas quatro bandas do planeta, nunca se poupou a esforços nem expedientes. O Império Americano nada mais pretende ser que um seu digno sucessor. Basta recordar a forma como, ainda bebézinho, esbulhou, brutalizou e exterminou os autóctones da América do Norte, para orçarmos a que ponto estava vocacionado para os mais altos voos. Pelo caminho, a República Francesa, as duas tentativas de Império Alemão, sobretudo a segunda, a patética tentativa de Império Italiano (por Mussolini), o Império Russo, dos Czares e dos Sovietes, o Império Japonês, o Império Espanhol, só para citar os mais emblemáticos, nalguns casos com a gana própria dos novo-ricos, entregaram-se a sangrias e hecatombes deveras notáveis e apenas um pouco menos engenhosas tão somente por força duma menor durabilidade.
Todos eles se sentiram animados das mais inadiáveis lógicas, creditados das mais humanas (e transcendentes) procurações, armados dos mais angélicos arsenais. Resistir-lhes, a tais portentos de luz e progresso, francamente, só por pura e acintosa maldade. Os demónios, todos sabemos, opõem-se ao progresso e expiam invariavelmente a derrota. Já a vitória santifica e consagra, peremptoriamente, os deuses. Glorifica as suas panóplias e devastações.
O Imperialismo Alemão do III Reich foi julgado por inúmeros crimes de guerra em Nuremberga, apenas por via da derrota militar dos seus mentores. Caso tivessem vencido, os virtuosos seriam eles e os criminosos demoníacos seriam os outros. A propaganda cantá-lo-ia em hinos celestiais, os historiadores alfaiatariam os factos à medida das conveniências e a bem da carreirinha, os castrados e eunucos mentais de todas as épocas, masturbadores activos das "glórias do momento a ferver", peregrinariam e venerariam sem descanso a sua memória.
Portanto, o que Israel está a fazer, à sua pequenina escala, infelizmente, não nos exibe nada de novo, nem, tão pouco, de subitamente ignóbil. Bem pode Israel abrir a gabardine à vontade, que não nos escandaliza. Não é menos desculpável, mas também não é especialmente condenável, por causa disso. De facto, em toda esta sua peripécia mais recente outro não faz que participar em toda uma tradição que reflecte uma lei muito antiga - uma que já as fábulas comemoravam: a lei do mais forte. Que ao longo dos tempos, de resto, e a começar em Caim, se confunde com a "lei do mais bem armado". Nesta perspectiva atávica - fria e tecnocêntrica mas sinistramente eficaz e, raios a partam, real -, o mal e o bem, o melhor e o pior derivam predominantemente da qualidade do sistema bélico, da capacidade agressiva e predadora de cada agremiação excursionista galvanizada de projectos imperiais ou meramente campeoníssimos (pode ir desde os benfiquistas aos americanos, passando por evangelistas, muçulmanos, comunistas, sionistas, arianistas, globalistas ou o diabo que os carregue!). O "pior" acaba por redundar sempre no que tem as piores armas, entenda-se: aquelas que falham clamorosamente em certificar no terreno a superioridade das suas ideias, a justeza dos seus desígnios, manias, ideiais, caprichos ou fulgurantes apetites. Ao contrário da água apaziguadora das mitologias, as auto-proclamadas civilizações baptizam a ferro e fogo e têm na arma o fundamento e o garante do seu "sistema de valores". Quando não os próprios pilares ontológicos.
Assim, no cumprimento de tão insigne tradição, é na sua superioridade bélica que Israel fundamenta e sustenta o seu direito inalienável, tanto quanto a sua sobranceria moral; e é ela, essa mesma superioridade bélica (de arsenal próprio e de apoio) que a transforma num Estado dotado de prerrogativas unilaterais, bem como credor das maiores compreensões e beneplácitos internacionais. Não é por ser especialmente maléfica que brutaliza exemplarmente, embrulhado em papel de punição, as populações do Líbano. Aí estamos apenas ao nível da propaganda e contra-propaganda. Israel apenas mata mais que os seus inimigos porque dispõe de meios que o permitem e potenciam. Em termos estritos de vontade e maldade, provavelmente, os lados equivalem-se: os Hezzbollahs e Hammas seguramente desejariam matar mais e os Israelitas, obsidiados, encantados e seduzidos pela sua formidável panóplia sempre crescente, quase de cetrteza que não resistirão a dar-lhe excitante uso e, necessariamente, fatalmente, tenderão a ocasionar, de futuro, superiores morticínios. Desçamos pois à realidade: mais que moral, a questão é técnológica. Não são apenas os fins que justificam os meios; são previamente os meios que determinam e insuflam os fins. Desde há uns tempos a esta parte (posso escrever-vos um tratado sobre isto), mais que o homem utilizar a arma, dir-se-ia que é a arma que arrasta o homem. Eu, pelo menos, estou capaz de dizê-lo, alto e bom som. Por conseguinte, Israel faz o que faz não por singular perfídia, mas, principalmente, repito, porque tem armamento para o efeito. Quer dizer, tem ferramentas para a tarefa, meios para a empresa. Ou, pelo menos, acredita que os tem. Além de oportunidade, pretexto, cobertura e, em larga medida, impunidade, bem entendido. Os riscos de comparecer num tribunal Internacional, ao estilo de Nuremberga, são, convenhamos, no panorama actual, praticamente negligenciáveis. Antes deles, sentar-se-iam os americanos e os ingleses, em catadupa.
Entretanto, há quem diga que os métodos em curso em nada se distinguem dos utilizados pelos alemães -nem sequer da Wermacht, mas das SS -, sobre as diversas resistências dos países ocupados durante a 2ª Guerra Mundial. Recordo: por cada soldado alemão morto, ou acto terrorista de sabotagem (os Nazis também consideravam terroristas os resistentes e socorriam-se da lei internacional para o efeito), fuzilavam (torturavam, etc) um determinado número de civis avulsos. Em nome da acção psicológica, funcionava como punição que se pretendia operasse como dissuasão para futuros actos hostis. Pois bem, tecnicamente, a acção dos Israelitas em nada está a distinguir-se deste modelo pouco edificante. Como aliás não se distingue dos bombardeamentos estratégicos aliados, nessa mesma guerra, perdoem se vos relembro mas metódica e preferencialmente sobre alvos e infraestruturas civis; ou do terror stalinista sobre classes e grupos étnicos considerados reaccionários ou colaboracionistas; ou da repressão turca sobre os Arménios; ou da repressão dos terroristas Sioux, Cheyennes ou Apaches pela brava e heróica - toda ela investida e mandatada pela Civilização Ocidental - cavalaria americana; ou da razia dos romanos, no reinado de Tito, sobre os zelotas judeus; ou, só para terminar com dois casos gémeos mais recentes, os bombardeamentos da Sérvia e do Iraque (este reforçado com toda uma democratização a tiro que ainda prossegue). Portanto, tanto se pode chamar nazi à proeza israelita do momento, como democrata liberal, só para citar a dicotomia mais popular dos nossos arraiais e opinadouros. Além da algazarra típica da claque, como é bom de ver, tal gargarejo acaba por não definir nada.
Abreviando. Que quero então eu significar com tudo isto? Uma coisa muito óbvia e elementar, pelo menos para pessoas de boa fé e cultura média: a brutalidade, a desumanização (própria -para semi-deus- e alheia -para insecto), a carnificina desarvorada não têm sido património exclusivo de nenhuma época, povo, império, política, ideologia, religião, etc. É uma pena, mas é assim. Os episódios divergem no folclore da indumentária, mas repetem a rotina catastrófica do drama. A civilização, vista em profundidade, mais não tem sido que o verniz com que a barbárie pinta as unhas, o perfume delicodoce com que disfarça o suor da matança e o hálito asqueroso do festim necrófago. O império - o único que tem prevalecido e animado, em forma de instinto visceral, todos os outros - é o império da bestialidade, da treva, da ganância e da vaidade balofa, histriónica e psicopata do macaco de Deus.
Há um determinismo do mal? Estamos condenados a uma pocilga eterna, ao açougue perpétuo a boiar no espaço?
Que sei eu? Não ando também para aqui a tropeçar nas tripas, nos sonhos e nos testículos, perseguido por medos, fantasmas e preconceitos? Do que sei, ou julgo saber, é que, entre outras, há uma força da gravidade que nos puxa para réptil, que nos prende ao chão e um pensamento que nos empurra para cima, nos convoca ao céu. O problema é que, quase sempre em nome de fazer do homem um anjo - o tal progresso canonizador de todas as matanças e latrocínios, mais não têm obrado que enxertar asas no réptil. Ainda não voa, é certo, mas consegue cuspir o veneno cada vez mais longe.
Disso, ao menos, eu sei e posso quase falar de cátedra. Ainda reconheço falsos dragões quando os vejo.

E se insistirem num fecho moral para tão vil fábula, sempre ouso adiantar o seguinte, em jeito de enigma (algo anedótico, reconheço, mas é o que se pode arranjar):
As ferramentas, depois de se tornarem senhoras, ameaçam tornar-se tiranas. A caminho de escravos, nós já pouco mais somos que meros utensílios - armas ao serviço de mãos invisíveis. E, consequentemente, somos todos alvos.
Ninguém anda a massacrar civis, acreditem. Nem hoje, nem nunca. O que não se cansam de massacrar, desde os princípios dos tempos, é qualquer hipótese de verdadeira civilização. Sendo que o pior massacre de quantos existem decorre dentro da nossa própria alma e todos oficiamos nele.
Não duvido que o inferno esteja atulhado de boas intenções. Sobretudo quando, numa vida inteira, vou descobrindo que neste mundo reinam as piores. Por imperativo lógico, vejo-me assim forçado a dar razão a todos os filhos da puta desta terra: vivemos certamente no Paraíso. E quanto piores forem, as intenções, melhor ele fica.

1 comentário:

Anónimo disse...

Procure ler o livro dos livros - não seja sábio aos seus próprios olhos - Deus não se deixa escarnecer - abençoe Israel e vc será próspero.Deus é mistério e espírito - importa que os que O adorem o adorem em espírito e em Verdade.