-"Não ouviste, pá?! - Alertou-me o Caguinchas, mal entrei na tasca. -Disseram agora mesmo: estão previstos 4 milhões de mortos de fome, no próximo ano, na Coreia do Norte!..."
O Caguinchas estava perplexo, diante da TV, e eu, devo confessá-lo, também me estarreci.
- "Pôrra, vai ser uma razia!...! - Desabafei.
- "Não, nada disso. - Corrigiu-me o Caguinchas. - Vai ser é uma catástrofe humanitária, foi o que eles disseram."
Foda-se!, murmurei pra com os meus botões, como é que se explica uma coisa destas?...
O Caguinchas, esse, não tardou a arranjar uma explicação adequada:
-"Oh pá, o problema é que os gajos não têm de comer, neribi com que dar ao serrote!..."
Mas eu, sempre com a mania das filosofias, não me contentei com os factos e desatei à procura das causas, como recomenda Aristóteles.
Isso transportou-me. desde logo, a uma aceso debate mental sobre o comunismo. Que é, afinal, o comunismo? Existe? É um regime? É uma desculpa? É um equívoco? É um pretexto? E por aí fora. Ocorreu-me então pensar que, quiçá, o comunismo é um pouco como o kung fu ou as artes marciais: tem diversos estilos, consoante os mestres e, sobremaneira, as zonas geográficas. Por isso o comunismo coreano, ao jeito do Tae-kwon-do, diferia do comunismo chinés, ou do vietnamita, ou do russo, ou do cubano. Por outra palavras: o comunismo norte-coreano lá teria as suas peculiaridades, sendo uma delas, matar pessoas à fome. Só que fome e comunismo, não sei porquê, não combinam. Tradicionalmente, o comunismo, como bom materialismo que é, até se preocupa quase exclusivamente em encher a pança à turba, enfim: em dar-lhes fardamento e enfardamento. A "fome", a existir, é mais de ideias e de luxos ocidentais. Portanto, se acontece uma fome generalizada destas, isso só pode ser sinal inequívoco, além da falta de alimentos, também de falta de comunismo. Quer dizer: não me venham com trêtas, mas o regime norte-coreano, de comunista deve ter quase nada. Ou então é um comunismo ainda mais avariado que a nossa democracia. A esta hora, os norte-coreanos deviam estar estúpidos, mas gordinhos. Se além de estúpidos ainda estão a morrer de fome, então, ali há gato. E gato bem grande, senão mesmo uma pantera!
Trata-se, então, dum regime tresloucado, pilotado por um tirano psicopata, uma espécie de Saddam Hussein coreano, obsecado por armas de destruição maciça e apocalipses urgentes...Mas, nesse caso, os norte-bushianos, esses anjos da guarda do nosso mundo, já teriam corrido a salvar toda aquela boa gente das garras do vil monstro. Ora, não só não o fizeram, como não parece que isso lhes passe sequer pela cabeça. Portanto, também não é um regime destrambelhado.
Foi então que se fez luz no meu espírito, estimulado que foi este, diga-se em boa verdade, por três cálices de trotil.
Ora, é sabido como o ditador norte-coreano nutre um especial fascínio por coisas ocidentais, capitalistas, norte-americanas (parece que do cinema às armas de destruição maciça, tudo lhe cai no goto)...Vai daí, parece-me evidente, ele pôs-se a observar cientificamente como o Ocidente resolve o problema do emprego e da rentabilidade das empresas. Descobriu assim a noção de "excedentário", quer dizer, aqueles que, sempre que convém às administrações, estão a mais e não fazem falta nenhuma. É mesmo o Bê-a-bá da administração de empresas no regime neo-liberal dos paraísos ocidentais: a empresa tem problemas, reais ou inventados? Não interessa; despedem-se uns gajos e tudo se resolve. Isto, transposto para a mecânica de automóveis, resultaria mais ou menos no seguinte: o carro não anda, avariou-se? - É porque tem peças a mais, desnecessárias. Retirem-se esses pinchavelhos, e tudo voltará à excelência. O problema nunca está no condutor ou eventual azelhice do mesmo. Imaginá-lo sequer, constitui crime. É tabu.
Por conseguinte, o títere norte-coreano, aproveitando tão pedagógico exemplo, limitou-se a aplicá-lo à sua "empresa". Pensou mais ou menos assim: "esta minha empresa, chamada "Coreia do Norte", não tem falta de comida, tem é comedores a mais! Aliás, sendo a minha administração perfeita, imaculada, de inspiração divina, não vejo como é que qualquer defeito ou anomalia poderia suceder".
E vê muito bem. Nós é que vemos mal e, nesciamente, chamamos "mortos de fome", quando deviamos dizer "despedidos". Em 2004, a confirmarem-se as previsões, serão 4 milhões de bocas no desemprego, sem comida para trabalharem ou transformarem. É apenas mais um caso de excesso de mão-de-obra para a matéria prima disponível.
Mão-de-obra, ou melhor dizendo, "boca-de-obra" excedentária, descartável. Porque o norte-coreano, é um neo-liberalismo de vanguarda, radical!...Resolve logo o problema pela raíz! E, ao mesmo tempo, consegue um verdadeiro milagre socio-económico, que só pode fazer babar de inveja os pseudo-doutores ocidentais: resolve o excedentário sem agravar em nada a taxa de Desemprego!
-"Mas porque é que os américas não os invadem?!" - Clamava, indignado, o Caguinchas.
Ora, não os invadem, nem libertam, nem democratizam, porque, pura e simplesmente, estão a aprender com eles. "Vais ver daqui por uns anos!..", culminei, astutamente.
Mas acho que ele não percebeu.
Sem comentários:
Enviar um comentário