quarta-feira, outubro 14, 2015

Politicolepsia e Demorróidas (r)

Entretanto, no circo do absurdo, assim como a democracia, de mero meio, ascende a princípio e fim de si mesma (temos a democracia para sermos democratas), também a política experimenta idêntica desfiguração: a política não tem como finalidade maior e mais nobre governar, mas o governo é um mero meio para fazer política. E assim se reduz a função, sobretudo, a um recorrente debitar e ininterrupto bombar de propaganda, no encalço do rasteiro descascar de ideologias geralmente rançosas, que aqui arribam já ao retardador e em estado de deterioração avançada. E onde, regravo, a fundo e fogo, a merda não se distingue: espelha-se.
No resto, redunda num quadro que escuso de repetir por outras palavras e apenas relembro na sua tão infeliz quão perene actualidade:

Passámos daquilo que, segundo os especialistas e tudólogos, era um país politicamente atrofiado para uma província politicamente hipertrofiada. O tremendo défice deveio enxurrada. A fome deu em diarreia. Quer dizer, se no tempo de Oliveira Salazar a política era tarefa exclusiva de um homem, hoje a política é ocupação geral e compulsiva da malta toda. E quem não a pratica, frenética e obsessivamente, lixa-se.
Nas escolas ensina-se? Não, faz-se política. Os hospitais tratam da saúde? Não, tratam da política. Os tribunais administram a justiça? Não, ajudam à política. A polícia investiga? Não, faz política. Os jornais informam? Não, fazem política. A própria tropa que, por estatuto e princípio, não devia meter-se na política, não faz outra coisa: política; ainda por cima internacional. O país inteiro anda a fazer que anda mas não anda, anda a fazer que faz mas não faz, em suma: de norte a sul ninguém faz corno de jeito porque anda tudo muito ocupado a fazer política. A Igreja faz política, a ciência faz política, os jornalistas fazem política, as universidades fazem política, o sector privado faz ainda mais política que o público, porque senão, queixam-se todos, ninguém se safa. Dos berçários aos lares da terceira idade, é política que nunca mais acaba!
Da política confinada, resvalámos assim para a política desenfreada. Antigamente tínhamos a polícia política e é o trauma, a compunção recorrente, a choraminguice militante que se celebra, semana sim, semana não. Hoje, em regime de corrimento gorjal, temos escolas políticas, hospitais políticos, tribunais políticos, forças armadas políticas, padres políticos, jornais políticos, televisões políticas, serviços de informação políticos, universidades políticas, empresas políticas, até os clubes de futebol já são meio políticos – e ninguém se queixa. Enquanto a banca der corda e a publicidade tocar a campainha, hão-de porfiar no rilhafoles.
O próprio Governo, que mais desgoverno parece, é uma redundância pegada, uma desmultiplicação clonística de um único ministério: o da política; e de um único ministro: o Primeiro. Sim, porque bem pouco se está lixando o Ministério da Educação para a educação, ou o da Justiça para a justiça, ou o da Saúde para a saúde, ou o do Ambiente para o ambiente: todos eles zelam e cuidam é da política. Não fazem outra coisa senão converter e dissolver tudo na política. Política caiada a finança. Aos baldes.
O que, de resto, cumpre uma lógica inexorável. Manhosamente, os eleitores entronizam um tipo que a única coisa que sabe fazer, após maturação intestina num país que não faz outra coisa, é política. Ninguém pode esperar que administre o país, que oriente a nação, que aprenda com o passado ou que prepare o futuro. Faz aquilo que sabe fazer, em que foi amestrado: política. Ou seja, flutua de modo a que o seu umbigo fique à tona, ao leme, ao sol. O maior número de dias possível.
Isto há-de chegar a um ponto que um tipo, um dia destes, chama um canalizador e em vez da reparação requerida, da torneira arranjada, recebe um comício. Há-de chegar, minto: já é assim. Entra-se num táxi e descobre-se um Demóstenes ao volante; vai-se ao barbeiro, e leva-se com um Catão de tesoura e pente em riste; passa-se na padaria e depara-se com uma Rosa Luxemburgo em erupção; convoca-se um limpa-chaminés e temos um Lenine de escovilhão pela certa; fugi da mulher-a-dias se não quereis aturar um Marcelo Rebelo de Sousa ao ralenti.
Os Atenienses clássicos tinham a mania dos tribunais; os romanos a tara do circo. Nós, lalonautas destravados, mascadores sonoros de crises elásticas, transformámos o país num frenético parlamento! Num palratório geral e compulsivo! Num grulhódromo desenfreado!´
É um país inteiro em demorragia oral, a entornar-se pelos cantos, a desbordar-se pelas esquinas, ruas, escadas, janelas, televisões e autocarros? Sim. Sem dúvida. E com uma grande camada de chatos, para cúmulo da comichice. E outra ainda maior de Demorróidas. Que, curiosamente, até passam por amigdalite.


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Quando naquele já célebre postal da Disfunção Pública (passe a imodéstia), se assssinalava o grande problema do Estado (que consistia na hubris Disfuncionária, ou excesso de disfuncionários), uma questão ficava implícita e por responder: como distinguir o Disfuncionário do Funcionário? Pois bem, em definição sintética, poderíamos dizer que o Funcionário é aquela criatura obsoleta que teima em prestar um serviço; Disfuncionário é aquele que faz política. Também, e inerentemente, os funcionários conseguem distinguir-se uns dos outros, pelo menos segundo espécies (educação, justiça, segurança, saúde, etc); os Disfuncionários não: constituem um género único - uma amálgama, um magma, um despejo (e aqui, despejo no tripo sentido:  de ausência completa de pejo ou vergonha;  de fluxo de matéria indistinta;  de expulsão de residentes e inquilinos). Por conseguinte, enquanto o funcionário fica sujeito ao labirinto curricular, o disfuncionário não. Quer dizer, se o funcionário da educação só pode funcionar nesta (um professor  não pode candidatar-se a um hospital), o disfuncionário tanto pode disfuncionar nas finanças, como na saúde, como na educação, na segurança ou, onde quer que a real cunha, comissão ou gana partidária da última eleicinha o permita e promova.  Assim, o disfuncionário congrega não apenas o dom da omnisciência, como o da omnipotência e da ubiquidade malfazeja. Afinal, em se tratando de fazer mal (ou seja, de fazer política em vez de qualquer coisa de útil à comunidade), é indiferente o lugar. Ao contrário da função, que é difícil, penosa e requer uma grande dose de espírito de sacrifício, a disfunção é fácil, ultra-gratificada e não requer qualquer esforço de sabedoria, organização ou moral. 

PS: É claro que quando se diz agora "política", este conceito nada tem que ver com o significado original. Hoje em diz, "política" traduz-se num mero cumprir, não de qualquer finalidade do interesse público ou comunitário, mas da mera finança. Na perspectiva do Disfuncionário, a Disfunção Pública constitui apenas um sórdido expediente de auto-financiamento. A destruição dum país para que os seus Disfuncionários enriqueçam poderá parecer uma exorbitância aos contribuintes, mas aos felizes Disfuncionários sabe a verdadeira pechincha, autêntico negócio de ocasião. A todos eles, sem excepção, ao acederem ao providencial úbere, um lema maníaco telecomanda: "É agora ou nunca!"

2 comentários:

lusitânea disse...

Com a "frente de esquerda" da chamada maioria sociológica e com a cidadania CPLP que se vai seguir vai começar a finalmente a guerrilha cá dentro...coisa que afectava muito os desertores e refractários...

Vivendi disse...

"O senhor não vê a facilidade com que toda a gente discute nos jornais e pelos cafés, sem que, por assim dizer, surja ninguém com colaborações sérias e valiosas que tanto seriam de agradecer? Duma maneira geral, não há, neste País, quem realize. Pensa-se e divaga-se com abundância e facilidade impressionantes, mas, chegados à hora das realizações serenas, das provas reais, poucos são os que resistem à seriedade grave dos problemas que pesam sobre o país."

António Oliveira Salazar