Ao ler as peripécias e tropelias do Movimento dos Capitães contadas pelos próprios, um tipo fico com a clara impressão de estar a assistir a uma hibridação de recreio infantil com pátio de manicómio. Uma primeira inferência possível é que esta gente, por um lado, estava viciada institucionalmente na puericultura fardada (colégios, cacademias, casernas, messes mantinham-nos submersos numa espécie de realidade paralela e hermética);e por outro, que aquela coisa terrível que os apoquentava, lhes feria a delicada sensibilidade e para a qual não se tinham inscrito, a guerra enfim, tinha-lhes dado a volta ao miolo.
Todavia, sempre suspeitei que por detrás de toda e qualquer loucura há um método. Ou um doido mais doido que os outros que se arvora em Guia lógico do asilo.
Ora, no Movimento dos Capitães acontecem alguns fenómenos curiosos. O primeiro de todos, é a resma de não-capitães - majores, tenentes-coroneis, sobretudo - que coalescem e aparecem depois em espécie de tutoria dos catraios. E o segundo é o próprio móbil do movimento. Numa primeira instância é puramente corporativo e sindicante, como já vimos e escalpelizamos. Estão chateados com o decreto e acham que os espúrios atentam contra o "prestígio" das Forças Armadas (entenda-se, o exército). Mas há um momento em que esse pretexto adquire outros contornos mais desvairados e monomaníacos. Esse momento coincide exactamente na transformação da Reivindicação em...Revolução.
«Soava a voz bem timbrada do major Vitor Alves, coadjuvado pelo major Hugo dos Santos nos assuntos que mais directamente lhes estavam ligados, enquanto o capítão Vasco Lourenço secretariava com anotações e apontamentos de tudo.
Era impressionante o espírito de organização desta gente.
(...)
Por fim, lá veio o momento azado para o tenente-coronel [Luís Ataíde Banazol]:
(Discurso do Ten.Cor. Luís Ataíde Banazol):
«Meus caros camaradas, eu creio que vocês estão a perder o que têm de bom: energia e tempo, organização e vontade.
Estão a esgotar-se com um assunto que não vale a pena. Decididamente não vale a pena.
O problema que vocês julgam que está no âmago disto tudo não vale um pataco, e vai contra os nossos camaradas milicianos.
Eles também têm as suas razzões, e não será pelo facto de vocês conseguirem levar a melhor, que tudo ficará resolvido. pelo contrário, cada dia que passa, tudo se agrava.
E isto não é por uma questão de galões. O que vocês estão e todos nós, é agonizantes; simplesmente agonizantes. Estrangulados por um regime que nos conduz directamente para o abismo, para a derrocada, aliás como o têm feito todos os regimes fascistas, nomeadamente os de Hitler e Mussolini.
Todo o mundo olha para nós, oficiais do quadro permanente, como verdadeiros agentes do nazismo. Agentes das S.S.
E não podemos de forma alguma evitar essa execranda imagem, se não tomarmos a iniciativa de uma reabilitação, uma redenção aos olhos do nosso povo e dos outros povos do mundo, utilizando a nossa força para derrubar o governo.
Tenho ouvido falar, insistentemente, no abalado prestígio dos oficiais. Pois que esperam vocês daqueles, cujos filhos, irmãos e noivos são enquadrados por nós, para as guerras de África, donde poderão regressar mutilados, loucos ou mortos?
Que crimes estamos todos a cometer em nome da Voz do Dono?
É preciso que acordemos do pesadelo; é preciso acabarmos de vez com a maldita guerra colonial, que nos consome tudo, incluindo a própria dignidade de militares profissionais de um país civilizado.
Todas as nossas angústias, ansiedades e neuroses se situam na tragédia para que fomos e estamos a ser lançados, por um tenebroso conluio, que tem a hipocrisia por fachada e o assassínio por norma.
E nós, que representamos a força das armas, por que esperamos?
E nós, que vemos todos os dias esses exemplos de coragem dos moços universitários?
Desarmados, enfrentam a polícia de choque, e não deixam amortecer um só dia, a luta pela liberdade.
E nós, homens de armas?
É uma vergonha. Devemo-nos sentir envergonhados. É bem feito que nos humilhem e nos olhem com rancor. Somos a armadura da bestialidade e o bastião da brutalidade.
Não tenhamos ilusões: o governo só sai a tiro, e os únicos capazes de o fazer sair somos nós; mais ninguém.
Se o não fizermos, a História nos julgará, como julgou os abencerragens de Hitler.
Não devemos consentir que isso aconteça, e que os vossos filhos e os meus netos se tenham de envergonhar de nós.
Impõe-se a Revolução Armada desde já, seja qual for o seu preço e as suas consequências.»
Ecoou uma salva de palmas, como se se tratasse de um comício e não de uma reunião clandestina.
Depois, estabeleceu-se certa excitação, com trocas de impressões de uns para os outros. Entusiasmo efervescente, olhos a brilhar, torrentes de palavras em surdina. (...)
Chamada do primeiro inscrito para falar. Não se está certo de quem fosse. Tinha uma figura vulgar: baixo, cabelo muito curto, casaco largo que lhe pendia dos ombros.
Levantou-se, com ar um tanto empolgado por leve tremor dos lábios. Rendeu calorosa homenagem ao desassombro e à verdade das palavras que acabara de ouvir. Que trazia ali, por escrito, as opiniões dos camaradas que representava, sobre os assuntos constantes da ordem do dia, mas achava que, em presença do acontecido naquela sessão, essas respostas estavam ultrapassadas por completo.
Que agora, a resposta era só uma palavra: Revolução.
Mais aplausos.
Depois outro, no mesmo tom.
Depois outro que divagou sobre a angústia e inquietação colectiva que se revelava em todas as conversas nas salas de oficiais, a toda a hora. Eis que ali encontrou a resposta cabal: Revolução.»
- Diniz de Almeida, Origens e Evolução do Movimento dos Capitães.
O relato de Sanches Osório confirma o de Diniz de Almeida:
«Ao fim e ao cabo, nesse plenário de Cascais foi decidido que a Comissão refundisse o programa, que não podíamos continuar com reuniões tão amplas e que o Poder tinha de ser tomado pela força (afinal a tese do Ten.Cor. Banazol). Assim, o plenário deu poderes à Comissão Coordenadora para nomear uma Comissão articulada numa parte militar e outra política, as quais fariam respectivamente o planeamento militar da Revolução e o Programa político.» (in, O Equívoco do 25 de Abril, pp.25)
Entretanto, a 1 de Dezembro de 1973, nova reunião conspirativa, desta vez em Óbidos.
«Presidiam-na Vasco Lourenço, Vitor Alves, Hugo dos Santos e Lopes Pires.Dois pontos essenciais preenchiam a agenda. Para além do estafado ponto da situação, tão estafado quanto necessário, estava previsto submeter à votação as seguintes alíneas:a) Quem é pela revolução imediata;b) Quem é pela revolução após um prazo mais ou menos longo de preparação e aliciamento;c) Quem é pela revolução com último recurso, depois de esgotados todos os meios de negociação com o actual governo »- Diniz de Almeida, in "Origens e Evolução do Movimento dos Capitães", pp216
Na reunião de Óbidos, Diniz de Almeida perora, advogando a revolução imediata. O seu mentor, Ten. Cor. Banazol, qual Trotski resfolgante, vai mais longe e apresenta, de chofre, um programa imediato de dissolução do governo, Presidência e Assembleia nacional. Onde prescrevia qualquer coisa como:
« PROCLAMAÇÃO AO PAÍS - JUNTA MILITAR DE SALVAÇÃO NACIONAL
- Por imperativo da consciência da esmagadora maioria dos oficiais das Forças Armadas, à frente dos seus homens e prontos a fazer uso da Força, exigem:- Demissão inediata do Presidente da República e de todod o Governo.- Dissolução da Assembleia Nacional.- Dissolução de todas as autoridaes polítricas.Para evitar a efusão de sangue estabelecem que sejam abandonadas as instalações da Presidência da República e do Governo, por todos os actuais ocupantes e guardas armados, até às 17 horas de HOJE.Findo este prazo, as Forças Armadas executarão a ocupação dos edifícios a todo o custo e em quaqleur momento, com todos os meios ao seu dispor.- São constituídas Juntas Militares de Salvação Nacional em:Lisboa, Porto, Coimbra, Tomar, Évora, Bissau, Luanda, LOurenço Marques, Nampula.etc, etc (...)»
O "Programa" do Ten. Cor. Banazol era de tal modo desenfreado que apenas recebeu apoio dos indefectíveis, gerando censura por parte da maioria. Nas palavras do seu acólito Diniz, "ficou desde aí injustamente marginalizado por louco ou incapaz" (a revolução começava assim por petiscar o seu próprio gatilho)... Não obstante, a semente estava lançada e iria florir meses adiante. Nessa animada reunião, acabou por ganhar, por margem mínima, a alínea c) (ver supra). Não sem que antes Banazol interviesse novamente, num assomo feroz de gana revolucionária:
«Meus camaradas, eu sei que por esse processo de comissões para aqui, comissões para ali, nunca mais se chega ao fim e entretanto este vosso amigo vai com a trouxa às costas para a costa de África pela quinta vez. Com a devida vénia, não vou nisso. E sem desprimor para ninguém, participo-lhes que vou fazer o seguinte: no dia D, juntamente com a Artilharia de Évora e de Vendas Novas, cujos capitães estão todos comigo, ocupamos Évora, Montemor, Vendas Novas e Pegões. Interditamos assim uma fatia que parte o país em dois, enquanto fechamos as saídas de Lisboa para o Sul.Constituímos em Évora ema Junta de Salvação Nacional, difundimos panfletos, fazemos conferências de imprensa e aguentaremos o tempo necessário até sermos seguidos por vocês e por outros.O Presidente, o Governo, a Assembleia, tudo isso há-de sair como peras podres abanadas pelo vento.»
Em resumo, o Ten-Cor. Banazol ardia em ímpetos bélicos para se atirar ao seu próprio Governo, e estremecia de repugnância visceral à perspectiva de voltar a África para combater o Inimigo. Esta sua derradeira alocução causou algum tumulto, conforme anota Diniz de Almeida:.
«Calma, vociferam uns perante o olhar atento de outros.Assim, de repente, tudo isto me lembra "Os Demónios", de Dostoievski. O jovem alferes Bargão semelha aquelas figuras transtornadas e demenciabundas como a aluno de liceu ou a estudanta. Todas estas assembleias parecem reposições serôdias do serão cultural em casa de Chigalev. O corolário, então, é sumptuoso (nas palavras de Diniz de Almeida):
Levanta-se excitado o alferes Bargão e continua inflamado, mais jovem, as palavras de Banazol. Este, radiante, pois fizera-se ouvir, constata o eco e dá-se por satisfeito.»
«Felizmente, no fim da reunião um excelente chouriço assado esperava por nós; também nas castanhas, se conjugavam desta feita, os esforços dos participantes.»
Vamos ao rescaldo.
O que significava "revolução" para aquelas alminhas?
Marxismo-leninismo aos molhos, maoismo de alguidar, jacobinite ao retardador?
É claro que havia por ali influências, geralmente pacóvias, de tudo isso. Mas a essência não era essa. Qual era então? Pura e simplesmente acabar com a guerra. Ora, a única forma de acabar com a guerra era acabar com o regime. Ou seja, demolir a ordem que obrigava à guerra. Se o país fosse por arrasto, paciência. Porque a guerra não era apenas com os terroristas, vulgo Movimentos de Libertação, mas com as tais "entidades internacionais" de serviço ao fole da história de conveniência. Repare-se que não é por acaso que o visionário Banazol colocava os militares sob alçada dos mesmos tribunais internacionais que os (nos seus termos propagandísticos) "abencerragens de Hitler. É que no plano internacional, os inimigos de Portugal eram, sobremaneira, e para aquela questão específica (do Ultramar), a Inglaterra, os Estados Unidos e a União Soviética, ou sejam, os aliados da 2ª Guerra. No fundo, os militares portugueses, segundo este erudito paranormal, estariam ao serviço do último resquício do "fascismo derrotado" em 1945. Esta fantasia política não era nova: logo após a 2ª Guerra tinha sido muito explorada pelas forças anti-regime. Continuara latente e emergira no 13 de Março de 1961, em termos atenuados de mera inversão da política ultramarina, de modo a adequá-la ao gosto da época. Aos militares revolucionados pela arenga Banazólica cumpria, assim, concluir o trabalho inacabado das potências aliadas, varrendo aquele quisto anacrónico da história.
Agora, dir-me-ão os leitores, "sim, mas essa tese descabelada não granjeou o apoio da maioria."
Pois, caros leitores, apontais muito bem. Mas, como bem sabeis, as revoluções nunca foram feitas por maiorias. O que, de resto, logo na página seguinte, o próprio Diniz de Almeida assinala::
Agora, dir-me-ão os leitores, "sim, mas essa tese descabelada não granjeou o apoio da maioria."
Pois, caros leitores, apontais muito bem. Mas, como bem sabeis, as revoluções nunca foram feitas por maiorias. O que, de resto, logo na página seguinte, o próprio Diniz de Almeida assinala::
«A consciencialização política, ia lentamente ganhando forma, acessível embora apenas, a uma reduzida minoria. A diferença de mentalidades entre a minoria vencedora do 25 de Abril e a maior parte do Exército havia de se agravar não só com o recalcamento decorrente da sua não-participação no movimento, mas também fruto dos inevitáveis pruridos que sempre surgem nestas circunstâncias.» (in Origens e Evolução do Movimento dos Capitães, pp.221)
A minoria vencedora, sabemo-lo hoje, prosseguiria a sua gesta solapante, até à debandada colonial estar concluída em tempo record. Esta, a debandada, em 1976, ao Ten. Cor. Banazol, no seu livro "Os Capitães generais e os capitães políticos" (pp.108), mereceria o seguinte comentário:
«A descolonização como está à vista foi uma hecatombe. E fez milhares de vítimas, pois fez. (...)
Estes finais são sempre apocalípticos, infelizmente, mas ninguém é capaz de travar o passo à marcha da Humanidade. Quanto mais se pretender travar, pior.
Por isso se começou por dizer que as personalidades, isto é, os homens em si, pouco ou nada podem contra a corrente dos acontecimentos históricos de tal envergadura.»
Curiosamente, esta perspectiva destravada (que triunfou, por muito que nos custe) aparece hoje repetida e papagueada por zombis mentais que, em tese, mas apenas por efeito de cuspo, se arvoram nos antípodas do Trotski de Abril. A justificação para a mesma reside no simples caso do seu êxito eventual, tal qual ficou vertido - e gravado - para a posteridade num dos mais belos aforismos do nosso tempo, pela cantora Ágata: "sou pimba, mas tenho um mercedes!"
8 comentários:
E contra isto, o "serviço público" de TV são imbecis animalescos a pedir moedas.
Os totós que pensaram que a radio/TV/internet eram a educação universal ... LOL, como dizem agora.
Não disse obrigado, pois não? Raios, um tipo até perde a educação. Obrigado.
ahahhaah
Que coisa louca esse Hamlet de Sacavém
« Somos a armadura da bestialidade e o bastião da brutalidade.»
Obrigada
Depois de um post destes resta fazer como os comentadores que me antecederam e agradecer.
Para aqueles como eu, nascidos já bem depois do 25/4, esta série Acromiomancia tem o impacto de um murro no estômago. Por mim, vou guardando estes postais no disco (espero que ainda não tenhamos chegado a meio) e vou mandando aos amigos.
Mas volto a algo que já lhe disse, Caro Draco. A quem foi dado um talento assim 'e lícito pedir um trabalho de fôlego diferente. Por isso renovo a ideia anterior. Fica perdoado de abandonar o blogue por uns bons meses se ao fim desse tempo puder entrar na Fnac ou na Bertrand para comprar o seu livro sobre o fim do Antigo Regime e o começo do Novo. E olhe que há muita gente da minha idade e mais jovem a querer pegar no tema sem a Gaivota voava voava como música de fundo.
Miguel D
A mistura de talento literário, espírito incendiário e conhecimentos de insider da-lhe o que os marketingueiros apelidam de vantagem comparativa irresistível. Pense nisso
Miguel D
Faço minhas as palavras de Unknown.
Parabéns Miguel D, pelos seus inúmeros e sempre excelentes comentários com os quais estou invariàvelmente d'acordo.
Maria
Miguel,
Uma coisa eu sei: é a vossa geração e a dos vossos filhos que um dia há-de pegar no testemunho. Eu só o transmito para que as trevas não encubram tudo.
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