quarta-feira, abril 01, 2015

Acromiomancia Revisitada - XIII. Cai o Carmo e a Trindade




«O Comandante-geral da GNR, general Adriano Pires, recebeu-me cordialmente acompanhado de um grupo de oficiais, sargentos e praças. Enquanto nos dirigíamos para o seu gabinet, onde se encontrava o Presidente do Conselho, verberei o Governo pela situação crítica de agitação e revolta em que entregava o país.
O prof. Marcello Caetano, sentado num sofá, embora se encontrasse manifestamente acabrunhado, mantinha, todavia, uma atitude serena e digna, enquanto que os Drs. Moreira Baptista e Rui Patrício, permanecendo numa sala contígua, se encontravam visivelmente desmoralizados. Ao aproximar-me, o Prof. Marcello Caetano levantou-se. Cumprimentei-o cortesmente e afirmei-lhe: "O estado em que Vossa excel~encia entrega o País! Tudo isto se poderia ter evitado!" E ao dizer-lhe "É tarde para Vossa Excelência reconhecer a razão que me assistia», Marcello Caetano interrompeu-me, retorquindo que não era aquela a altura para recriminações. respeitei a sua atitude e não fiz mais comentários. Declarou-me, então, considerar-se vencido e que, por conseguinte, estava pronto a entregar o poder, mas só o faria a alguém que lhe desse garantias de o mesmo "não cair na rua".
Informei-o de que seria transportado numa viatura blindada, juntamente com os dois ministros, para o Quartel da Pontinha, onde estava instalado o "Quartel general" do Movimento, e perguntei-lhe, nessa ocasião, pelo Almirante Américo Thomaz, sujo paradeiro me disse desconhecer.»

- António de Spínola, "País sem Rumo"

Vamos lá por partes. Então decorre uma tentativa séria, pública e radiodifundida de Golpe de Estado, ainda por cima militar com todas as letras, e o Chefe do Governo não sabe do Presidente da República? O Chefe da revolta, pelo menos em tese, também não sabe do principal representante da Nação? Pior, o Chefe dos revoltosos está ali para receber o poder de alguém que não o detém ao nível que seria requirível por uma transmissão daquele quilate? Ambos, o Chefe do Governo e o Chefe dos revoltosos teriam, em termos legais, todo o interesse em saber onde raio parava o presidente da República, já que cumpria ao Presidente do Conselho informar o Presidente da República que não tinha mais condições para governar, de modo a que resolvesse com o Chefe dos revoltosos aquilo que, do alto do seu arbítrio máximo, muito bem entendesse. O Prof. Marcello Caetano, emérito e distintíssimo (com toda a justiça) perito de Direito não sabia deste quesito básico de leigitimidade? Estava de tal modo transtornado que se esqueceu? Segundo Soínola, estava calmo e sereno. Segundo outros que o visitaram também nesse dia, não apresentava sintomas de pânico ou alucinação. Então como é que pode transmitir uma coisa da qual, legalmente, não dispunha? Como explicar um tal desembaraço?
Em 1926, quando os militares tomaram o Poder, o general Gomes da Costa, e posteriormente Carmona, convidaram Salazar para o Governo. Quando Salazar adoeceu gravemente, o Almirante Américo Thomaz convidou Marcello para formar governo. Podia ter convidado outro qualquer, e esse outro qualquer, como Marcello, seriam Chefes do Governo porque o Presidente da República assim os investia. Então como é que um tipo que é segundo na escala do Poder se apronta a entregar algo que não detém autonomamente e a) sem saber onde pára o real e legítimo detentor do Poder constitucional; b) sem, pelos vistos, apresentar qualquer espécie de seríssima objecção ou impedimento à farsa; c) sem manifestar qualquer preocupação pelo desconhecimento do paradeiro do Presidente da República; d) sem ter feito reais e concretos esforços para que esse contacto essencial tivesse existido.
Se isto não é colaboração com o carnaval em curso, é o quê? Manicómio instantâneo e geral automaticamente instalado?...

Podemos até imaginar a cena, em casa do Almirante Américo Thomaz, no Restelo...
Sua Excelência está calmamente debruçado sobre a sua colecçãpo de selos, no escritório. Da sala, chega a Srª Dª Gertrubes que declara, com ar preocupado:
-"Américo, parece que andam militares pelas ruas, com tanques e tudo!..."
O Almirante quase não lhe presta atenção, absorto na alta tarefa de conferência filatélica. Mesmo assim, murmura:
- Ah sim? E estão por onde, dizem...?
- "Pois parece que estão a cercar o quartel do Carmo, onde se terá estabelecido o professor Marcello Caetano..."
O Almirante semi-sorri.
-"Bem , então são questões com o governo. Provavelmente reivindicações salariais. Não há perigo. Se fosse golpe de estado, haveriam de querer mudar o regime... Vês algum aí à porta?"
A srª Dª Gertrudes ainda confere de novo pela janela...
-"Não, não se avista vivalma."
- "Vês? A coisa não é séria. Senão teriam vindo ter logo comigo."

De facto, a coisa não era séria. Adiante, Spínola alude ao Presidente da República, Comandante-em-Chefe das Forças Armadas, nos seguintes e prosaicos termos:
«Como se encontrasse por resolver o problema do Almirante Américo Thomaz, que, finalmente, foi localizado na sua residência particular no Restelo, encarreguei o tenente-Coronel Almeida Bruno de o informar que o Governo se havia rendido e que, por decisão da Junta, deveria embarcar, nessa noite, para a Madeira. Recomendei-lhe, no entanto, para agir com toda a cortesia e respeito devido a um ex-Chefe de Estado(...)»

Portanto, caros leitores, abismemo-nos pela enésima vez. Afinal, o chefe dos revoltosos sabia que existia um "Chefe-de-Estado".... Um Chefe de Estado que, entretanto, passou a ex-Chefe de Estado. De que modo? Por artes mágicas?  Quase. Por artes prestidigitantes de feira, ou seja, por acordo verbal entre o Chefe do Governo e o Chefe dos Revoltosos. Repare-se que o General e aquela catrefa a quem prestava o frete de chefe decorativo atentavam duplamente contra o dever de lealdade ao Almirante Américo Thomaz , em primeiro lugar, como Chefe de Estado, e em segundo, como Comandante em Chefe das Forças Armadas. E de que modo é que o senhor é considerado?  Despacha-se um tenente-coronel para lhe comunicar a sua destituição ad-hoc e a sua trasladação residual à Ilha da Madeira, porque parece que nas Berlengas não havia tendas disponíveis.
Há um aspecto que todo este episódio demonstra sem margem para dúvidas nem especulações: o respeito e consideração que o Estado Português, naquele dia, mereceu, quer ao representante máximo do Governo, quer ao representante dos Golpistas - Nenhum! Zero. Nada. Nicles.
Traição ainda requer alguma dignidade maléfica, mas isto nem sei se excede o mero nível da bandalheira.

Na antecipação daquele dia, Marcello Caetato, em "Depoimento", confessa:
«O episódio das Caldas  não devia ser subestimado, porque decerto os oficiais que o provocaram contavam com apoio que a pronta reacção do governo ou o facto de ter havido precipitação na revolta não tinham permitido actuar. Esses apoios não desarmariam, procurariam fazer a "revolução do remorso" (...)»

Todavia, um mês depois (um ror de tempo, como se vê, propiciador do esquecimento, da descontracção e da sonolência) nas palavras de Marcello, «a revolução que veio efectivamente de surpresa, e conduzida dessa vez com toda a eficiência, em 25 de Abril.»

E a explicação delicada e tocante para que não houvesse resistência? Ora, para que não houvesse derramamento de sangue. Ainda alguém se podia magoar, com aquelas armas todas numa cidade tão linda e primaveril. Um país que tem um guerra aberta em quatro frentes (mais a das estradas e auto-estradas onde nunca há tréguas), enche-se de momices e compunções hipócritas porque alguém pode ferir-se em virtude duma rixa doméstica?!... As Nações, sejam elas quais forem, erguem-se, defendem-se e preservam-se com derramamentos de sangue.  Em oito séculos de história, não foi assim tão pouco o derrame português. Vem um tipo assaltar-me a casa violar-me os parentes e eu aceito mansamente, justificando depois: ah, não o reprimi minimamente para evitar o derramamento de sangue, sujava-me a alcatifa?... Não, pois não? Então se isto que não é aceitável, nem digno, nem minimamente vertebrado para uma pessoa, é pacífico e perfeitamente razoável para um país inteiro?! Como é que qualquer ser humano português, adulto, e dotado de inteligência, que não se tenha degradado à mais estanhada filha-da-putice pode compactuar, ou achar perfeitamente normal, uma infãmia destas?!...

Então- que coquetes e sensíveis que nós somos! -, não podemos derramar sangue em Lisboa... Pois muito bem. Depois desse dia, uma coisa era certa, ninguém mais iria querer derramar sangue no Ultramar. Estavam lá os otários a combater os terroristas e depois cá o governo não enfrentava terroristas mascarados de militares, com medo de derramar sangue. Ou, esperem, Marcello não quis dar ordens porque depois a coisa podia correr mal e ainda o magoavam a ele...  Ah, pronto, coitado, borrou-se. Acontece. enfim, trata-se doutro tipo de derrame.  Ninguém decerto esperava dele grandes rasgos heróicos... Conversar em família, óptimo; agora ralhar aos vizinhos, nem por sombras!...

E depois, a justificação para a entrega do Poder de pechisbeque?
Lucilante. Ora oiçam: Para que o mesmo, o poder de fancaria, não caísse na rua. Sobretudo, presume-se, na rua dos Fanqueiros.
É que os militares não estavam a vir da rua, engolfados e lambuzados de multidões floridas. Não, acabavam de descer das nuvens, dos espaços siderais inefáveis, do olimpo da Rua Augusta. Portanto, com toda a sua consciência cívica salvaguardada, Caetano entregou o despoder a Spínola.

Que uns meses depois, declama já, contaminado pela tóxica dádiva, também ele convertido à calimerice brejeira:
«Tinha chegado a minha hora de opção!
Ceder à vontade do Conselho de Estado, conformando-me com a situação anárquica que conduziria o país à ruína, ou agir em conformidade com a minha consciência, contrariando a opinião colectiva dos membros daquele conselho.»
Torturado por este dilema terrível, o general aflito, socumbe ao stress: demite-se. E entrega o poder de contrafacção... à sargeta.

Em resumo, qual a hipótese mais plausível em que aposto? Tudo somado, inclino-me à piedade: foi mesmo desarranjo intestinal do Marcello. Transtornou-se-lhe a tripa e, no aperto, mandou Portugal pela retrete. O Poder? Alguém o apanhou no esgoto e anda a empestar com ele até aos dias que correm... Ou escorrem, melhor diizendo.








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