terça-feira, abril 28, 2015

De cabeça levantada



«Pondo de lado tudo o que pode ser considerado arte de jornalista no inquérito e ainda, aqui e além, curiosidades de menor monta, são visíveis as duas grandes preocupações do autor. Confesso que elas me divertiam um pouco pela insistência com que eram postas, embora reconheça que traduzem as maiores dúvidas do grande número. A primeira pode exprimir-se assim:
Este homem que é Governo, não queria ser Governo. Foi deputado; assistiu a uma única sessão e nunca mais voltou. Foi ministro; demorou-se cinco dias, foi-se embora e não mais queria voltar. O Governo foi-lhe dado, não o conquistou, ao menos à maneira clássica e bem nossa conhecida: não conspirou, não chefiou nenhum grupo, não manejou a intriga, não venceu quaisquer adversários pela força organizada ou revolucionária. Não se apoia aparentemente em ninguém e dirige-se amiúde à Nação, entidade bastante abstracta para apoio eficaz. Tem todo o ar de lhe ser indiferente estar ou ir; em todo o caso, está. Está e há tanto tempo e tão tranquilamente como se ameaçasse nunca mais deixar de estar. Suporta os trabalhos do Governo, sofre as injustiças,os insultos dos desvairados, os despeitos, as raivas dos impotentes. Vai engolindo, de quando em quando, a sua conta de sapos vivos, comida forçada de políticos, segundo pretendia Clemenceau. E está, e fica... Mas o problema, a dúvida continuam no mesmo pé. Aquele que não foi toda a vida candidato ostensivo à governação, que não sacrificou a esse objectivo todas as energias do seu ser, que a si próprio se não proclamou capaz de dirigir, de mandar, de executar e fazer executar um programa de governo, seu ou alheio, que considera o Poder mais como um dever de consciência que como direito a usufruir pela força da conquista, - de onde lhe vem, se não é filha da ambição de mandar a força de vontade necessária para não ficar a meio caminho? de que se alimenta o ânimo no trabalho, na luta, para não mostrar abatimento, desânimo, vontade de desertar?
Não sendo eu o autor do inquérito, não me cabe a mim desfazer estas dúvidas e esclarecer este ponto. Entretanto formulo, por desfastio, algumas hipóteses.
[Hipótese nº1]
As últimas dezenas de anos são na História Portuguesa de decadência profunda; esta atingiu, pode dizer-se, todas as manifestações da vida nacional, a produção, a cultura, a administração pública, a política. No entanto, examinadas mais de perto as coisas, verifica-se que esse abatimento não proveio da absoluta carência de homens. Nas artes, nas ciências, no ensino, no jornalismo, na indústria e na agricultura, na colonização, afirmaram-se ou trabalharam simplesmente, ignorados, alguns valores de primeira ordem. Por outro lado, nós não podemos fugir, sobretudo num país da formação do nosso, a que seja o Estado quem represente efectivamente a Nação, aos olhos de portugueses e aos olhos de estranhos; dele vem a orientação superior, a organização e disciplina dos indivíduos, a sequência da vida nacional. A expressão desta é mais ou menos alta e digna, conforme a elevação do próprio Estado. Sem que desconheçamos ou menosprezemos inteligências, capacidades, esforços, boas vontades, aliás primeiras vítimas dum estado de coisas deplorável, o Estado português esteve longe de dignificar sempre Portugal. Quero dizer: se a Nação não correspondia aos seus valores individuais, o Estado era ainda inferior à Nação. Uma falta de organização, de enquadramento, de direcção superior deixava as melhores unidades inaproveitadas ou improdutivas, cada qual se queixando de um mal que sozinho não podia suprir e não se unindo espontaneamente a outros para o fazer cesar.
De facto, enquanto a nossa educação for o que é, o poder público há-de ser sempre a mola real da vida e progresso do País, e consequentemente o grande responsável da sua inferioridade ou decadência. Ora, o cuidado que devia haver na organização do Estado, na sua adaptação às realidades e necessidades nacionais, no recrutamento dos valores a quem se havisa de confiar a administração e a política, esse cuidado, mercê de circunstâncias que não vale a pena examinar, nem sempre o houve - não é verdade? -e por isso a nossa expressão ou representação nacional não foi sempre feliz e sobretudo não foi justa: tínhamos mais e melhor.
Todos os que temos, pela inteligência, pela voz do sangue ou simplesmente pelo instinto do coração, a consciência da nossa unidade e independência, da nossa grandeza passada, da nossa colaboração na obra civilizadora da Europa, dos nossos interesses actuais na África, na Ásia, na Oceania, sentimos - ferida aberta na alma - o riso mundial, a troça dos povos em nada superiores a nós, a não ser na sua linha exterior, por causa da nossa agitação revolucionária, da nossa incapacidade governativa, das nossas irregularidades de administração, do nosso atraso e do nosso descrédito. Temos sido, numa palavra, enxovalhados e vexados. Ora há portugueses suficientemente orgulhosos da sua qualidade de portugueses para sentirem tudo isto como afronta pessoal, e para, chegada a ocasião, tirarem do seu orgulho ferido a paciência, a tenacidade, a força necessária para procurar implantar no País a ordem e a boa administração, fomentar o progresso material, revolucionar a educação e dar à Nação e à sua política um tal aprumo e dignidade que possam reconquistar para Portugal o bom nome e o respeito de todos. Esses portugueses sabem que, sem exageros, sem agressividade, sem declarar quixotescamente guerra ao mundo, os países, como os indivíduos, podem, pelo seu trabalho e pelas suas virtudes, ter direito os pobres a estar diante dos ricos, os pequenos diante dos grandes, de cabeça levantada e até de chapéu na cabeça.»




Esta longa citação, em epígrafe, foi escrita por Oliveira Salazar no ano de 1933. Podia um outro qualquer português digno desse título escrever hoje a segunda parte (referente à hipótese formulada) que estaria plenamente actual e retrataria com fidelidade intensa o drama colectivo do nosso país neste nosso tempo. É que mesmo os nossos interesses em África, embora sob outras roupagens, condicionantes e enquadramentos, continuam. E não são pequenos, como nada no horizonte estratégico duma nação  é, a não ser para alminhas microscópicas. Como estas que nos desgovernam e todos aqueles que as  apaijam em miniatura gelatinosa e coro invertebrado.

7 comentários:

Vivendi disse...

Absolutamente extraordinária a magnitude do pensamento de Salazar, pensamento que precede uma aprendizagem do saber antigo mas sempre enquadrada nos problemas modernos que tal como o Dragão referiu ainda se encontram bastante actuais.

No seu entendimento, Dragão, onde acha que Salazar ia buscar tamanha sabedoria?

Que corrente de formação/ filosofia clássica o influenciou mais?

Vivendi disse...

126 anos do nascimento de António de Oliveira Salazar.

dragão disse...

«No seu entendimento, Dragão, onde acha que Salazar ia buscar tamanha sabedoria?»

À inteligência dele. E como a inteligência é algo que recebemos de Deus, a limite, ao Altíssimo.

Mas em termos mais catalogares, há quem o taxe de maurrasiano. Pois tem bastantes afinidades, mas eu não juararia por aí.

Penso que a influência mais funda, e fecunda, vem da própria Igreja, e do Filósofo que, via S.Tomás, a levantou na vertical em direcção ao Deus Desconhecido.

José Lima disse...

O pensamento de Salazar é profundamente influenciado e estruturado pelo tomismo, como bem refere o Dragão, e pelo magistério contra-revolucionário dos Papas sociais do século XIX e começo do Século XX - eminente e centralmente por Leão XIII, com Gregório XVI e Pio IX a montante, e São Pio X a jusante.

Unknown disse...

Há partes do pensamento de Salazar profundamente burkeanas. Não sei se foi o Draco que citou Salazar sobre a tendência dos nossos governos do pós-1820 para resolver problemas através da legislação. E Salazar falava sobre a importância dos hábitos quotidianos das pessoas e das comunidades, dos pequenos comportamentos individuais, da cultura, etc. de uma forma que me faz lembrar muito o Sage de Beaconsfield.

Miguel D

Vivendi disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Vivendi disse...

Agradeço a intervenção de todos.

Salazar teve contactos com várias correntes de pensamento mas também considero que a mais decisiva e preponderante foi a sua ligação à igreja. Era lá que ele encontrava a força sobrenatural para a transcendência.